Diário dos Infelizes
Excerto
14. – O rótulo
Desocupada. Era assim que Tereza se sentia. Comedido nas palavras, Rogério foi saindo devagarinho de dentro dela, não fez as malas, apenas foi levando com ele nos bolsos o que tinha trazido.
Foi quando ela descobriu que tudo faz eco no corpo das mulheres desocupadas, até o medo. Começou a sentir rumores por todo o lado, mesmo por dentro do corpo. Como vigilantes atentos, deixava então os dedos vaguearem na pele quando estava sozinha na cama. Por vezes demoravam-se nos seios pequenos, os mais bonitos do mundo, dizia o Rogério tanta vez. Mas… isso era no tempo em que ele lhe afagava os seios… agora era ela que deslizava os dedos na volta polida da pele, pelo rugoso mamilo adormecido. Não sentia prazer, apenas medo. Por isso um dia pediu ao médico uma mamografia.
- Sentiu algum nódulo?
Perguntou ele de olho no seu decote.
Ela a dizer que não, que não tinha sentido nenhum nódulo, a abrir a blusa mesmo antes de ele pedir, a chamar pelas mãos dele, a pedir uma garantia de que estava bem, que eram apenas rumores o que sentia por dentro do seu corpo. Precisava.
E ele a tocar-lhe, a dizer-lhe que ela era nova ainda e tinha as maminhas pequenas (mas não lhe disse que eram as mais bonitas do mundo o que a deixou triste).
- Não encontro nada… mas pode estar por dentro, silencioso! – disse ele. Vamos fazer uma mamografia!
Tereza estremeceu. Sentiu que os fantasmas ainda brincavam dentro dela após as palavras do médico. E ele, sereno, com os dedos a apalpar-lhe os seios de forma mecânica e a dizer que havia patologias assintomáticas. O mesmo era dizer que o nódulo podia ser silencioso como o Rogério. Fechou a blusa com violência, apertou os botões de forma atabalhoada, nervosa, com tremura nos dedos. Estas não eram as mãos que ela desejava ver no seu peito, não eram estas as palavras que ela procurava.
Depois de noites de insónias sofridas, permaneceu então duas horas numa sala de espera envolvida de mulheres como ela, prenhas de fantasmas, a olharem umas para as outras pelo canto do olho, a olharem para os peitos umas das outras, a medirem os seios, a tentarem cheirar a doença umas das outras como os cães vadios quando se encontram pelas ruas. Novas, velhas, gordas, magras, a cheirarem-se discretamente, a medirem os seios pelo canto do olho.
- Há aqui qualquer coisinha… uma coisinha má!
O murro final, o vómito. Agora era oficial, tinha o rótulo. Quando chegou a casa rasgou a roupa, colocou os seios envergonhados em frente ao espelho e gritou:
- Estavas aí filho-da-puta, e não dizias nada?
(…)
Capítulo 38. – Livrai-me do mal
Os dias passavam nebulosos mas o corpo ganhava resistências. Conseguia aguentar sem náuseas os cheiros da comida, secavam as borbulhas da cara, ganhava cores para além de um cinzento mórbido que lhe escorria das olheiras.
O seu anjo louco, o seu anjo careca, colocava-lhe todos os dias um lenço diferente na cabeça, e saiam as duas à rua, gaiteiras na cor, emboras sombrias no andar. A Casa de Chá era ponto obrigatório de paragem. Nessa manhã serviram-lhes uma massa folhada com iogurte, morangos suculentos, framboesas e amoras. Ela estava sem paladar, tudo lhe sabia a nada. Mas como tinha ainda sapinhos na boca, a língua seca, agradeceu a textura suave e fresca daquela delícia silvestre.
O bolo tinha uma papel escrito a lápis, sempre a lápis, que dizia:
“o céu é uma ilha rodeada de infernos por todos os lados, é preciso navegar na dor para o alcançar.”
Tereza leu o papel uma e outra vez, como que a contar um por um os infernos que tinha à sua frente. Ergueu os olhos….
- Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o Vosso nome…
As igrejas são bonitas no silêncio. A serenidade de Deus escorre na luz. É mais importante senti-Lo que ouvir a palavra sagrada na boca de um homem, por muito santo que o homem seja. O silêncio isola-nos, coloca-nos dentro de nós ao ponto de sentirmos o nosso próprio sangue, o nosso próprio respirar. Durante uns minutos demoramos a despir o barulho que trazemos na cabeça, a agitação nos olhos, mas aos poucos o corpo desliga-se do mundo, sentimos o silêncio frio a roçar a pele…
- Venha a nós o Vosso reino, seja feita a Vossa vontade, assim na Terra como no Céu.…
Tereza olhou para dentro dela e teve medo. Quase sentia o ranho a espreguiçar as patas no seu peito. Sentia-o.
Sentia que o mal ainda tomava conta si, ainda lhe beliscava a pele por dentro, as veias queimadas. Já lhe tinham caído as sobrancelhas, as pestanas, todo e cada pelo do seu corpo, até o mais íntimo.
Sentia-se um campo de guerra devastado, mas onde o inimigo persistia. Por isso tinha medo. Muito medo. Medo da morte. Medo de que fosse essa a vontade de Deus.
Qual a melhor data para morrer? Perguntava-se.
E respondia a si mesma que não tinha agenda para a morte, nem espaço, nem vontade. Não porque tivesse uma filha para criar, um marido - ou o que restasse dele. Nada disso. Não queria morrer por ela mesma, porque amava a vida e ponto final. Não precisava de desculpas para querer sobreviver.
Tinha o direito de ser egoísta. Porque se morrer, morro eu, só eu, apenas eu – pensava ela. Os outros sofrem, desfalecem, mas acordam sempre. Quem tem saudades acorda, quem não tem saudades também, só quem morre é que não. Apaga-se.
- O pão nosso de cada dia no dai hoje…
Olhava os santos nos altares. Inertes, sem vida, com caras de pau. Como podiam ser interlocutores perante Deus que era luz, que era vida?
Deus, se estiveres por aí, escuta-me. Conheces-me: sou frágil e pecadora como quase todos os teus filhos… Não Te prometo grandes rezas nem o acender de velas, mas peço-Te, perdoa as minhas ofensas, como eu estou a tentar perdoar a quem me tem ofendido. Não me deixes cair mais em tentação, mas sobretudo, livrai-me do mal, deste mal que me aflige, deste ranho que se entranha, desta angústia que me destrói. Talvez não tenha direito a pedir nada, absolutamente nada, perdoa também este meu desespero e que seja feita a Tua vontade. Amém.