Contos de Macau

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Excerto

“Não nos conhecem, chinesinha de açafrão, não nos conhecem, tão nus e tão virgens quando estamos juntos – deveriam invejar-nos, isso sim, invejar-nos. Aprendi a falar cantonês só para conversar contigo – não é esta uma prova de amor puro? (…) Anda, fuma comigo, enche o peito deste fumo que de tudo nos liberta, das dores, dos pecados, dos remorsos, do gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados. Fumos que nos libertam, nos desatam sem dor, sem nos esgarçar a alma e a carne. Fuma comigo, fuma este ópio alegre. Poisa o fumo branco da tua boca na minha boca, como um beijo soprado. Já não quero que nada se cure, já não quero que nenhuma ferida se cerre, já não quero que as pálpebras se abram…. Só quero que nada me pise e nada me doa. Esgotei a minha capacidade de sofrimento, a minha reserva de sanidade. (..) Só quero que nada me doa, só quero o bálsamo da tua voz branca a ecoar na cabeça, a chamar pelo meu nome - “Pe San Ié… Pe San Ié…” – e fumar, fumar longamente, a perder os sentidos, devagar, muito devagar…”

...


“Luiz fica perdido nas águas. De um lado as escritas de uma vida, dentro de um baú. No outro a mulher que lhe estendeu a ponta da sua blusa de algodão, a sua pele, o seu calor. E as águas selvagens a enrolar e a desenrolar os corpos, as madeiras, o cordame, as velas, os tonéis, o baú onde seguiam as odes aos reis que um dia tinham dilatado a fé e o império até Macau. E um braço no ar, um grito a dizer “salva-me!”. Não era isso que ela dizia. Gritava algo que não se entendia. Mas o poeta sabia que aquela boca cheirava a flor de cerejeira e o seu grito era uma súplica. E ia ao fundo das águas, pensando que se afogava, e vinha ao cimo para respirar… e ao longe o baú onde seguiam os versos épicos sobre um povo e os seus mais nobres, o trabalho de anos. E o grito de Tin Nam Men tão diferentes de todos os outros - tão nítido nos seus ouvidos, a estremecer-lhe a pele fria. E do outro lado, a perder-se nas vagas, o poema com o trama de homens e deuses, de tragédias e glórias, de passados e futuros. “Perdoa!” – soluçou ele a despedir-se de uns olhos arroz agulha que o olhavam de longe, chorosos.”


“Senhor, aposto estas 20 patacas em como faço de olhos fechados, algo que vós não conseguireis fazer de olhos abertos…!”

De semblante sério, o homem bebeu mais um gole de champanhe fresco. Os seus homens sorriram e ficaram expectantes. Ele entrou no jogo, para ver até onde ia a sagacidade do homem. Abriu a carteira e colocou outra nota de 20 patacas sobre a mesa.

“Pago para ver…!” – exclamou.

Então, sob o olhar atento de todos, aproximou-se, ajoelhou-se aos pés do homem, fechou os olhos e… passando as mãos pelo chão, apanhou areia com que esfregou os olhos fechados. O homem de negro não poderia fazer o mesmo de olhos abertos - perdia o jogo e as duas notas da aposta. Sorriu com a graça e reparou que o andrajoso se ria também por baixo da barba suja. Ainda assim, agora que ele estava mais perto de si, pareceu-lhe reconhecer aqueles seus olhos. Contraiu o rosto e deixou cair o flute de champanhe ao chão. Era tarde.


 “Ela pedalava a noite inteira, curvada sobre a máquina, sobre a vida, curvada sobre o peso de tudo o que pesa numa pessoa. E mesmo quando o sol lhe morria na janela, e adormecia o barulho da rua, não se lhe acabava o dia. Continuava a trabalhar serão adentro, acasalando panos que se transformavam em calças, peças de algodão de onde nasciam camisas de longas mangas e golas de mandarim…

“Mãe, ainda estás a costurar sonhos?” – perguntava eu quando acordava a meio da noite e a via ainda de agulha e dedal, alinhavando um tecido de cetim cor-de-rosa.

“Sim, meu filho, neste cheongsam florido vai o sonho de uma menina arranjar namorado na próxima festa do?? - Yun Xio!”

E eu sorria e voltava a adormecer, orgulhoso da minha mãe, porque das suas mãos saía a felicidade das pessoas. Ela trabalhava todas as noites e eu agora entendia porquê, é que era de muita responsabilidade fazer as pessoas felizes.”