"Um Romance Histórico de Qualidade!"

Em momento de declínio da moda literária do romance histórico (…) o autor continua, com probidade, a visão de Alexandre Herculano, fundador do romance histórico em Portugal, sobre a confecção rigorosa deste género literário: verosimilhança ou similitude na história, no desenho das personagens e no enredo definidor da acção, e fidelidade aos documentos da época. Assim deve ser entendido o enquadramento estético de Vera Cruz, ao qual acresce (i) a imaginação portentosa de João Morgado, (ii) um léxico histórico prodigioso, fruto do convívio com os textos, e (iii) um domínio espantoso do detalhe histórico ao longo dos séculos XV e XVI, seja em Portugal (interior raiano e Lisboa), seja na Índia (Calecute e Cochim), seja no Norte de África (Ceuta e Tânger), três características que agradam sobremaneira ao exigente leitor de romances históricos. Com efeito, na fabulação do romance histórico de qualidade, não menos importantes são a verosimilhança e a fidelidade que a imaginação. Rapidamente o leitor se dá conta coexistirem as três em abundância no romance ora publicado, sem que nenhuma delas suplante as restantes. Dificilmente se pode pedir mais a um romance histórico, ainda por cima quando, acima de tudo, defende, como é o caso de Vera Cruz, teses hermenêuticas sobre o sentido da história de Portugal. Como explicita o autor na “Nota Final”, trata-se de uma “ficção controlada” (p. 506), concedendo aos factos rigorosamente comprovados a “emoção” própria da fabulação romanesca. Para além da descrição minuciosa da vida de Pedro Álvares Cabral (…) a descoberta de Vera Cruz, está fundada num estudo minucioso e rigoroso. Como dissemos, o autor defende duas teses históricas interpretativas da história portuguesa dos séculos XV e XVI. Em primeiro lugar, a descoberta intencional do Brasil pela armada de Pedro Álvares Cabral como contraponto à sede cobiçosa das especiarias da Índia pelo rei D. Manuel. Em segundo, a Ordem de Cristo teria intentado desviar o projecto do Rei Venturoso da conquista imperial da Índia, assente na riqueza das especiarias e na projecção imperial e narcisista do rei, deslocando-o para a evangelização dos índios do Brasil, designados no romance como “puros”. Em segundo lugar, a denegação de Vasco da Gama, personagem heroína dos Descobrimentos segundo a história corrente dos manuais de ensino. O descobridor do caminho marítimo para a Índia é considerado, em Vera Cruz, pouco mais do que um fidalgo arruaceiro e ambicioso cujo trato violento com o samorim de Calecute deitou a perder um entendimento pacífico definitivo entre o cristianismo e o hinduísmo. Parabéns ao autor pelo notável romance histórico.

Miguel Real, escritor, ensaísta, critico literário Jornal de Letras,, 2015