In: "Diário dos Infelizes" (Romance 2023) _________
« … De forma compulsiva limpou toda a casa, despejou as gavetas cheias de relíquias e deitou fora quase tudo. A vida é um somatório de bibelôs, pensou, irritada com ela mesma e com a sua mania de amontoar tudo. Para que raio tinha guardado o baralho de cartas onde faltava o Rei de Copas? o papel de lustro que guardava das prendas de Natal? uma carta que nunca deveria ter recebido? um frasco vazio de perfume? um papel com o decalque de um beijo para tirar o excesso de batom? o bilhete de cinema de um filme que a tinha feito chorar? o aparelho dos dentes de quando era garota? Um bilhete de comboio? uma nota de cem escudos fora de circulação? os novelos de lã das camisolas por tricotar? Ela que nem sabia tricotar. Havia ainda tanta coisa que ela não sabia. Por exemplo, aprender a arte do origami, a patinar sobre gelo ou tão simplesmente cozinhar uma tarte de amêndoa como a da sua avó. Afinal, concluiu com tristeza, tinha as gavetas cheias de bugigangas e uma vida vazia, perdida em sonhos suspensos – por isso, nada havia que lhe mudasse o cheiro da alma.
Ficou em silêncio, sem palavras. Finalmente percebia o Rogério. Há momentos na vida em que nenhuma palavra pode mudar o que se vive, por isso não há muito a dizer…
Se somos o que coleccionamos, o que apegamos à vida – pensava ela -, então estava atulhada de nada, o mesmo é dizer, desocupada. Em tempo, o Rogério tinha-a ocupado por dentro. Depois veio a Elisa, com quem tinha compartido o corpo. Neste tempo, por certo a sua alma cheirava diferente. Mas o Rogério foi saindo devagarinho. Não fez as malas, apenas foi levando com ele nos bolsos tudo o que tinha trazido. Um dia ela despejou o que dele sobrava no seu corpo, tirou a aliança do dedo e abriu as janelas ao ar limpo das manhãs. A filha agora estava longe, muito longe, a estudar no estrangeiro. É verdade que o estrangeiro começava onde acabavam os seus braços, a ponta dos seus dedos, mas ela estava bem mais longe que isso, além-fronteiras, além-mar. Tentava convencer-
se de que apesar da distância a Elisa ainda a habitava, mas sabia que não. Tinha deixado umas roupas espalhadas dentro de si, um livro na mesinha-de-cabeceira, mas já não morava no seu corpo. Depois veio o… o outro que não o Rogério. Mas esse não a habitava, apenas visitava um quarto vago que tinha por dentro dela. Um hóspede, um simples hóspede, não mais que isso.
– Há aqui qualquer coisinha… uma coisinha má!
Disse o Dr. Branco quando leu o resultado da biópsia ao peito. E foi nesse momento que Tereza se sentiu invadida, como se de uma forma selvagem lhe tivessem ocupado todos os quartos do seu corpo, como se o ranho tivesse espreguiçado as patas dentro dela, negro, viscoso, ultrajante, e tivesse profanado o que de mais profundo havia em si. Surpreendentemente, não disse nada. Não gritou. Não chorou sequer. Ficou em silêncio, sem palavras. Finalmente percebia o Rogério. Há momentos na vida em que nenhuma palavra pode mudar o que se vive, por isso não há muito a dizer… »
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“Tem personagens extraordinárias que nos fazem reconciliar com a literatura”
– Luís Osório, escritor –