As palavras más

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IN: "Diário dos Infelizes" Cap. 15 _____________

«Um lenço florido pela cabeça a cobrir os cabelos loiros e deslavados, um casaco verde-petróleo e a sua frase preferida na boca:

– Dá-me uma palavra má, por favor…!

Uns sapatos abertos onde se viam os pés nus e as unhas pintadas de verde; um alvoroço na alma, um pedaço de papel em branco e uma caneta. Tereza a pensar em tantas palavras más que lhe minavam os pensamentos, tantas palavras más para queimar.

– Estavas ai filho-da-puta, e não dizias nada?

Estava habituada a que nada lhe fosse dito. Sentia-se obrigada intuir as coisas que a vida lhe escondia. A escutar os rumores por dentro dela como prenúncio de uma coisinha má – patologias assintomáticas dizia o médico. E ela com vontade de lhe atirar com palavras feias à cara, para que depois a D. Arminda as recolhesse do chão e as aprisionasse no saco.

“Traição. O que sentia naquele momento era uma traição. Uma traição do seu próprio corpo, a traição da vida, a traição do Deus dos céus, omnipotente e desprezível que, afinal, também a tinha abandonado, também a tinha traído.”

Estava habituada a que nada lhe fosse dito, mas a ter a percepção de tudo. Houve um tempo em que o Rogério comprava a sua roupa interior, tomava banho mal chegava a casa, nunca andava em tronco nu, raspava os calcanhares e cortava as unhas dos pés sem que lhe pedisse, deitava-se cedo mas sem se encostar a ela, sem lhe meter as mãos por dentro das cuecas, simplesmente dormia…

– Há aqui qualquer coisinha… uma coisinha má!

Vaticinou ela, a ler mais além do que os sentidos lhe levavam, a racionalizar o que a rodeava, a ler direito no entrelaçado das linhas tortas, a olhar para o Rogério pelo canto do olho, a medir-lhe os gestos e as omissões, a cheirar-lhe as roupas, a tentar cheirar-lhe as mentiras como os cães vadios quando se encontram pelas ruas. Todos os dias lançava as mesmas perguntas e todos os dias ele lhe dava as mesmas respostas. As palavras eram sempre as mesmas, embora mais frias a cada dia; impacientes; nervosas. Queria ler-lhe os olhos mas ele voltava-lhe as costas; podia tolerar a ausência das mãos dele por dentro das suas cuecas, mas não a ausência do olhar que sempre a apaixonara.

– Há aqui qualquer coisinha… uma coisinha má!

Diz ela. Uma coisinha má, diz o papel que lhe deu o Dr. Branco com palavras feias que ela não se lembra de ter ouvido, que ela não entende, que ela não quer entender, que ela não quer ler, mas que estão bem legíveis: Carcinoma ductal invasivo, grau 2 histológico de Notthingham. Mais umas credenciais para um raio x ao tórax, uma ecografia hepática, um eletrocardiograma e uma cintilografia óssea – era preciso determinar até onde a coisinha tinha estendido as patas.

Um lenço florido pela cabeça a cobrir os cabelos loiros e deslavados, um casaco verde-petróleo e a sua frase preferida na boca:

– Dá-me uma palavra má, por favor…!

E ela a escolher entre tantas palavras feias que a atormentavam – ansiedade, desanimo, revolta -, a escolher a que mais lhe doía, a que mais a feria, a que mais lhe abria chagas no peito. E no papel branco, com toda a raiva que lhe era possível, rabiscou uma palavra que falava da carta que um dia recebera do Rogério, uma carta que ele nunca deveria ter escrito, a dizer que tinha outra mulher e que saia de dentro dela. Uma palavra que denunciava como o seu próprio corpo a tinha apunhalado deixando que o ranho negro, esse filho da puta silencioso, a tivesse violado por dentro, ocupando-a de forma selvagem. Rabiscou a palavra:

– TRAIÇÃO!

Sempre tivera medo da morte, mas agora a traição era mais dolorosa. Pensava: a morte é uma só espada, mas a traição é uma espada de mil dias, a teimosia da dor; é preciso escoar o sangue, secar o coração até o corpo se tornar insensível.

Traição. O que sentia naquele momento era uma traição. Uma traição do seu próprio corpo, a traição da vida, a traição do Deus dos céus, omnipotente e desprezível que, afinal, também a tinha abandonado, também a tinha traído.

– Porquê, eu?

Perguntava ela com medo do Deus castigador, com medo da radioterapia, da quimioterapia, da hormonoterapia, da mastectomia. Sentia como estava mudada. Agora sentia medo de tudo menos da morte. Quando se morre, morre tudo, até a dor. A morte é indolor, sabia disso. Tinha medo era dos momentos derradeiros, da forma de terminar a vida, do padecimento, do largar da pele antes de entregar o corpo. Nesse momento esqueceu-se dela e pensou na filha – o futuro do seu corpo…»

 

 

Prémio Literário Ferreira de Castro 2019

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