XXVII Congresso Internacional de Antropologia Ibero-Americana _____________________________
Romance como memória e base de estudo em antropologia
Sou João Morgado e, entre muitas outras tarefas e comprometimentos, sou escritor de romances históricos. É nessa qualidade que gostaria de lhes falar hoje, para abordar a literatura como fundo de memória e base de estudo em antropologia.
O romance é um cuidado repositório de memórias coletivas que pode ajudar a compreender melhor uma época, pelo que se apresenta como uma excelente base análise para temas e questões antropológicas. Permitem-nos compreender a cultura de um povo de dentro para fora, pois reflete uma escala de valores, crenças e práticas de um determinado grupo social. Ao lermos romances de diferentes culturas, podemos aprender sobre as suas visões de mundo, os seus relacionamentos sociais e as suas experiências quotidianas.
Por exemplo: o 3“Memorial do Convento”, de José Saramago, que narra a construção do Convento de Mafra, explora temas como o poder, a corrupção e a religião na sociedade portuguesa do século XVIII.
“Os Maias”, de Eça de Queirós, levam-nos para o século XIX, explorando a decadência da aristocracia, o amor e o inconformismo.
Quem fala de romances pode falar da poesia ou o teatro. Veja-se o fenomenal “Auto da Barca do Inferno”, de Gil Vicente, uma peça de teatro portuguesa que satiriza os costumes e crenças da sociedade portuguesa do século XVI.
Estas e muitas outras obras, são ricas em detalhes sobre a vida social, cultural e política de uma época, podem ajudar a identificar padrões de comportamento, crenças e valores, e assim, fornecer contributos sobre a natureza humana. É impossível não extrair algo destas obras, é impossível não aprender com elas…
Ainda assim, permitam-me recordar um romance fabuloso, “Amor em tempos de cólera”, de Garcia Marques, em que o seu apaixonado personagem, Florentino Ariza, telegrafista, quando tinha de enviar ofícios e relatórios, lhe fugia a mão para a criatividade, misturando a realidade e o imaginário, o pragmatismo burocrático a que estava obrigado por profissão, com a subjetividade literária da sua alma de poeta apaixonado.
Talvez ele fosse mesmo um alter-ego de Garcia Marques que costumava dizer que “todo bom romance deveria ser uma transposição poética da realidade”.
Isso levanta a clássica questão que nos é colocada aos romancistas históricos quando apresentamos um livro: – o que é verdade e onde entra a ficção? O mesmo é dizer, onde está a factualidade pura e dura, e onde está a tal “transposição poética” de que falava Marques.
Ora, quem quer história pura, factual, compra livros de história, lê José Mattoso, por exemplo. Eu digo sempre dos meus livros que têm de ser lidos como romances que são. E um romance não é um documento histórico ou etnográfico puro, dado que pode conter imprecisões, exageros e – obviamente – ficções.
O romance implica sempre uma dose – maior ou menor – de devaneio e fantasia. Por isso, é importante que os leitores compreendam as obras que têm entre mãos, e sejam criteriosos ao usar romances como fonte de análise.
A produção literária é uma construção, não um espelho. Resulta de uma visão própria do autor, marcada por convicções, ideologias, crenças, códigos e tendências sócio-culturais. Assim sendo, a literatura não espelha fielmente a sociedade – contemporânea ou de época. Toma-a antes como matéria-prima para uma nova realidade, modificando-a e até, no extremo, usurpando-a para o seu negativo, para o seu contrário.
Um romance que emerge de uma dada realidade histórica, não dá garantias de uma representação fidedigna. Esta mesma discussão tem o mundo jornalismo, saber se a notícia espelha o acontecimento ou é uma construção que depende do ângulo de observação e da diversidade de olhares dos jornalistas. E agora, acrescento eu, das directrizes ideológicas que impõem os grandes grupos de comunicação.
Voltando ao romance, volto a sublinhar que este é um espaço de ficção, onde o autor transfigura uma pretensa realidade histórica para construir a obra e a transformar numa aventura.
Contudo, é de referir que existem três grandes escolas no romance histórico.
A primeira, deixa que a criatividade anda à solta, na concepção de espaços, personagens e acções. Algo como a Guerra dos Tronos – pura fantasia, puro entretenimento!
A segunda, pega em personagens ou acontecimentos históricos, para os fantasiar. Esta é a mais polémica. Os historiadores e outros homens de ciência, acham que se está a brincar com a história, o que tem levantado grandes polémicas. Tome-se, por exemplo, uma bem recente, em que o José Rodrigues do Santos e a obra da sua autoria, “O Códex 632”, que apresenta Colombo como tendo origem portuguesa.
Diz o autor:
“Muitos temas são mitificados e quem os vem desmistificar e derrubar muitas vezes não são os académicos, não é o discurso político, não é o discurso mediático. São os romancistas, os cineastas, que pela primeira vez tocam no assunto e que permitem que depois se faça uma investigação académica mais apurada”, referiu.
Este foi logo acusado de “desprezo implícito pelo trabalho académico“ e de “difundir teorias da conspiração da História, sem qualquer sustento nem credibilidade”. Cito o historiador Roger Lee de Jesus, mas podia referir outros.
Existe ainda uma terceira escola onde procuro pontuar. É a que toma toda a investigação existente sobre o acontecimento ou personagem histórico e trabalha a ficção a partir desta camisa-de-forças. Entendo que demarca, mas não coarta a imaginação. Exige mais do autor, mas acredito que a realidade tem suficiente matéria fantástica se a soubermos aproveitar.
(…)
Com esta extensão criativa, podemos é dar novas dimensões que vão além da frieza das datas, dos nomes, dos locais… podemos conferir personalidade às personagens, enquadramentos às acções, iluminar a história de uma forma que as pessoas a entendam e a recebam com agrado. Isto exige um estudo profundo…
Hoje em dia, se derem um passeio pelas livrarias, encontrarão autores que já escreveram 20 livros sem aparentemente terem lido um que seja – assim vão os tempos. No meu caso, escrever um livro implica ler outros 20, ou mais, assim como papers académicos, intervenções em congressos etc. A isso me obriga o compromisso com os leitores, de os levar por caminhos verosímeis, e ainda os ilustrar com outros conhecimentos complementares…
Num festival literário, alguém me disse um dia, que escrever romances históricos era o mais fácil, pois a história já estava escrita, era “apenas” transpô-la para o papel de forma romanceada. Ao que respondi, ser precisamente o oposto. Ser o mais difícil. E expliquei:
– Quando escrevo um romance sobre uma personagem histórica, ninguém está pendente de como acabará o romance: Será que Cabral chega a Vera Cruz, hoje Brasil? Será que Gama chega às Índias? Será que Camões consegue editar “Os Lusíadas”?
Todos os leitores sabem que SIM. Sou vítima constante de spoiler, permita-me o termo. Então, se não é a expectativa do “grande final” que os prende ao livro, o grande desafio do autor, é prender o leitor à obra, página a página, capítulo a capítulo… mesmo sabendo o leitor como tudo vai terminar!
Como se faz isso? – oferecendo o lado b da história, os enquadramentos políticos e sócio-económicos, os bastidores dos grandes acontecimentos, os factos menos conhecidos, os ângulos de análise menos oficiais, as curiosidades da época que podem surpreender e fazer a diferença… ora, para além da imaginação, isso exige uma forte capacidade de estudo.
Assim, pergunto, devem os antropólogos e outros cientistas descartarem a literatura dos seus estudos. Creio que não. Oferecem material valiosíssimo.
Outra vantagem do escritor, é que este pode olhar para os documentos históricos, ver o que lá está, mas também ver o que lá não está, o que lhe oferece um horizonte mais alargado de opções…
Quando no meu livro “O Livro do Império”, apresento “Os Lusíadas” como um livro político – para além de poético -, atenho-me aos factos conhecidos e estudados, mas senti-me livre da leitura dos mesmos, abrindo novos olhares sobre as chamadas realidades históricas e levantando novas questões… e é sabido que, quando mudamos as perguntas, a história nos muda igualmente as respostas. É assim que avançamos.
Devemos desperdiçar este abrir de portas? Creio que não.
O historiador britânico, Peter Burke[1] defendeu que “a imaginação é uma faculdade indispensável ao historiador, que deve ser capaz de ver o passado através dos olhos dos seus protagonistas.” Ou seja, o papel da imaginação na representação histórica é fundamental. Pode ajudar os historiadores a preencher as lacunas das fontes, a compreender as motivações dos actores históricos e a criar representações históricas que sejam significativas para o público contemporâneo.
Quem pegar em romances para os usar nos seus estudos, apenas deve considerar os seguintes fatores:
Se o autor é contemporâneo da acção, ou sejam se escreve sobre a sua época (Ex: Alexandre Herculano, Shakespear) ou é um estudioso (Ex: Saramago, Miguel Real).
Se o estilo do autor é mais realista ou mais surrealista, mais inventivo. Sendo necessário ter em conta a sua experiência e bibliografia de investigação.
Segundo o americano Victor Turner[2]: “A literatura pode ser uma ferramenta poderosa para a reflexão antropológica. Pode ajudar a questionar os nossos próprios pressupostos culturais e a ver o mundo de uma nova perspectiva. A leitura de obras literárias pode levar-nos a uma compreensão mais crítica da nossa própria cultura e das culturas de outros.”
Sendo que o passado não pode ser reconstruído, mas tão-só reconstituído, as ferramentas metodológicas da ciência por vezes encontram vazios e, carecem de factos para avançar, porque a cultura de um povo é em si, algo irracional. É aqui que surge a literatura, mais desprendida, mais imaginativa, que observa as forças sociais e interliga as pontas soltas e avança, que cria pontes para atravessar esses vazios. A literatura dá soluções que escapam aos métodos científicos antropológicos.
Reconhece João César de Castro ROCHA[3] que “lidar cognitivamente com seres humanos – que se transformaram a si mesmos naquilo que são tanto social quanto culturalmente – parece exigir trespasse de fronteiras epistemológicas, uma vez que só as ficções são capazes de tornar acessível o que não se pode conhecer.”
Os romances são uma ferramenta valiosa para o estudo da antropologia, mas exigem atenção e crítica. Ao serem usados de forma responsável, os romances permitem monitorizar e aceder à cultura de um povo de dentro para fora. A literatura tem um privilegiado acesso ao passado, pois, como disse no início, é um cuidado repositório de memórias coletivas ainda que, muitas vezes, estudadas e reconstituídas.
Desejo-vos boas leituras!
João Morgado
(www.joaomorgado.net)
IN: XXVII Congresso Internacional de Antropologia Ibero-Americana
— em Centro De Diálogo Intercultural De Leiria.
26 de Maio de 2023
www.joaomorgado.net
[1] Burke, Peter. A história e a imaginação social. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1992.
[2] “The Anthropology of Performance”, de Victor Turner, publicado em 1986.
[3] ROCHA, João César de Castro,. Teoria da Ficção: indagações à Obra de Wolfgang Iser. P.157, Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999.