Contos de Macau, 2021 _______ Prémio Nacional do Conto Manuel da Fonseca 2020 _____
Sábado. Devem ser umas quatro da tarde. A habitação não tem qualquer relógio, nem ela o precisa, porque vê as horas pelo respingar do sol na janela. Tem um relógio de pulso, mas nos fundos de uma gaveta escura, com cheiro a tempos idos. Fora um presente. Como não lhe dera corda, adormecera as horas. Nunca precisara de o despertar, chega-lhe o sol. Os ponteiros são as sombras que dançam na parede caiada a branco. Um bailado moroso, arrastado, mas ali ninguém tem pressa. Ela olha para a sombra do prato de porcelana e sabe que horas são. É um prato pintado à mão, de um azul forte sobre o branco, tem um aro com desenhos geométricos, depois uma corola floreada e, no centro, um pavão enorme. Está esfacelado numa das pontas, mas isso não altera o andar do sol, nem da sombra. Na ponta oposta do móvel de bambu, repousa outro prato, orla floral, dois dragões, de cinco garras, envoltos em algumas nuvens. O mesmo azul. A mesma sombra. Devem ser quatro da tarde – pensa, ele deve estar a chegar.
Já colocou no rosto a máscara de mel e chá de canela em pó (excepto na região em redor dos olhos), tomou depois o seu banho perfumado, esfregou a pele com o negro sabão de carvão de bambu, pulverizou o seu perfume da flor da ameixa sobre o corpo, o seu jovem corpo de menina grande – pele suave, seios pequenos mas roliços, ancas estreitas mas firmes, pés que desistiram de crescer. Vestiu uma blusa leve, clara, com impressões florais, manga curta e gola de mandarim. Uma saia preta até aos seus pés descalços. Tem o cabelo solto e não pinta os olhos, nem os lábios. No primeiro dia, quando a conheceu, ele molhou um lenço e tirou-lhe todas as pinturas do rosto – como se estivesse a retirar as cores a um quadro de Shen Zhou, deixando ainda assim, um desenho com alma. Nunca esqueceu aquele momento. Suavemente, a esfregar-lhe o lenço pela pele, a sorrir, a falar um português que ela não abarcava mas que lhe soava a poesia, a palavras musicadas, a canção. A mão dele, forte, em gestos repetidos, a tirar-lhe a cor das sobrancelhas, dos olhos, dos lábios, a soltar-lhe os cabelos negros. Ela a tremer, não sabia se de medo, se de emoção. A tremer. Ele de uniforme branco, imperativo, a limpar-lhe a cor da sua vaidade. Demorara uma hora a aprumar o vermelho dos lábios, a linha das sobrancelhas, a sombra clara dos seus olhos rasgados. E num minuto, as suas mãos, fortes a limpar tudo.
“Como te chamas?”
E ela sem saber o que ele dizia, o que ele perguntava. Tremia. Não sabia se de medo, se de emoção. Mentira, sabia sim, de emoção. Era apenas de emoção. Não tinha medo daquele homem fardado de branco, daquele oficial da marinha que usava uma arma, mas que tinha voz de cantor.
“Chamo-me, Eurico!”
Punha a mão no peito e repetia lentamente – “Eu-ri-co”. Até que por fim ela bebeu os sons e os percebeu.
“Jia Li”
respondeu, de mão sobre os seios pequeninos, de olhos a pingar para o chão. Ele pegou-lhe no queixo e levantou-lhe o rosto. Repetiu:
“Jia Li …”
O seu nome significava pessoa boa e formosa, mas não tinha como lhe explicar isso. Ficou-se na esperança de que ele descobrisse por si só. “Jia Li”, repetia o homem enquanto ela sorria e preparava o chá. Deitou a água a ferver num bule de argila. Depois jogou fora aquela água e colocou as ervas lá dentro, tampando-o para o aroma da erva se espalhar naquela humidade quente. Depois deitou-lhe a “mãe do chá” – a límpida água da montanha, bem quente. Serviu-se primeiro – não por indelicadeza, mas porque as mulheres bebem o chá mais fraco -, e depois encheu a chávena do oficial com palavras musicais. Com dois dedos, ele bateu duas vezes na mesa, um costume chinês que significa “obrigado”. Ela sorriu. Gostou da atenção, do cuidado dele.
Beberam então o chá, beberam os lábios um dos outro em pequenos goles, beberam os sorrisos, beberam a pele quente, beberam o cheiro das intimidades, a humidade agridoce dos prazeres, como se aquela casa fosse um bule de argila habitado pelo aroma de uma infusão de corpos unidos num amor físico.

Desde esse dia, passou a visitá-la todas as quartas-feiras às cinco da tarde. Aos sábados, pelas quatro. Uma pequena diferença na sombra que os pratos desenhavam na parede. Um dia ficou para jantar, outro para dormir até meio da noite, naquela tálamo rasteiro em que se deitavam por entre cheiros de incenso. Ia ficando cada vez mais tempo aninhado na sua Jia Li, cujo nome repetia ao afagar-lhe o rosto, ao pentear-lhe os cabelos com os dedos, ao descobrir como era boa pessoa e muito bela. E ela a bater com dois dedos, duas vezes no lençol enrugado pelos corpos.
“Dás-me paz, sabias?” – dizia ele naquele seu português cantado que a excitava. “Como se diz paz em chinês? Paz?”
Ela não o entendia, sorria apenas e permanecia em silêncio. Mas um dia, numa pronúncia esquisita, ele disse hépíng – alguém lhe ensinara a palavra. Ele apontava para ela e repetia: hépíng! Ela baixou os olhos e sorriu – apesar de mal pronunciada, tinha percebido a palavra – paz! Ao fim de meses, anos, só tinham uma palavra entre eles. Uma só. Não sabia o que ele pensava da vida, da china, do jogo, dos deuses, do amor… Não conversavam sobre nada. Ao fim de meses, de anos, entre eles uma só palavra e bastava – He ping!
Ela era a sua paz. Uma paz que para ele tinha horários. Quartas, as cinco horas. Sábados, às quatro da tarde, quando a sombra ainda estava mais aprumada. Ele ofereceu-lhe um relógio de pulso, dourado, elegante, mas não tinha sol, por isso não lhe servia de nada. Não viveria a sua vida a olhar para aqueles ponteiros inquietos como o vento de inverno. Não queria o coração a bater naquele ritmo, a desgastar-lhe a vida a cada segundo. Acomodou-o no fundo de uma gaveta onde guardava retratos dos pais já desaparecidos, de uma irmã que estava morta, de outra irmã que estava viva, mas igualmente afastada dos seus olhos. Era por isso que a gaveta escura cheirava a tempos idos. Não valia de nada dar corda ao relógio, porque ali não havia futuro algum para onde avançar. Não podia dar corda ao retrato dos pais ou das irmãs, então não valia a pena dar corda a nada.
Olhava o azulão dos pratos, os dragões de cinco garras, do outro lado o pavão. Distinguia pelas sombras as três das quatro horas da tarde, distinguia pelo céu as quartas-feiras dos sábados. Distinguia igualmente as segundas-feiras, quando um jovem de olhos rasgados, vestido de verde caqui, a sorrir, vinha trazer-lhe um envelope com dinheiro. O homem de branco nunca tocava em dinheiro, coisa suja, para não macular os dedos dele, para não macular a pele dela, para não mudar o aroma da infusão dos corpos dentro de um bule de argila que era aquela casa. O menino de verde caqui vinha às segundas-feiras, religiosamente, ainda que a horas incertas. Não sabia se trabalhava para ele, se era apenas um empregado do Grémio Militar que ele frequentava na Avenida da Praia
Grande. Já o vira uma vez por lá, no varandim, num fim-de-tarde quente e húmido. Ele sorrira apenas, de longe. Mas sentiu os seus olhos a espreguiçarem-se nas suas coxas até desaparecer na esquina. Por momentos houve um aroma a chá naquela rua.
Sábado. Gostava dos sábados. Deviam ser quatro da tarde, a julgar pelas sombras alinhadas da parede. Ele podia chegar a qualquer momento. Por isso, senta-se na ponta lateral da cadeira, com elegância, sustém a barriga, junta as pernas e eleva os ombros. Espera.
Ele já há três meses que não aparece. Mas ela espera-o à hora certa, como sempre, depois da máscara de rosto, do banho demorado, dos perfumes. Há três meses. Tem a água a ferver para o chá, e no leito, a colcha de seda adamascada cor de abrunho. Há três meses. Comprou um cheongsam novo, cor de mel, com orquídeas bordadas. Um vestido justo ao corpo que lhe alonga a silhueta, com a gola levantada e o abotoamento lateral. Apanhou o cabelo e colocou uns pingentes doirados nas orelhas – quer fazer-lhe uma surpresa.
Dizem que um oficial português morreu num barco, uma arma que se disparou por acidente. Dizem, mas ela não ouve. As sombras só lhe dizem as horas, mais nada.
Às segundas-feiras continua a chegar um carro de matrícula branca, de letras e números vermelhos, um táxi, trazendo um rapaz vestido de verde caqui. Um rapaz que já não sorri mas não esquece o envelope. Lá dentro, algo que suja as mãos. Um destes dias, pareceu-lhe ver uma mulher lá dentro do carro, junto a ele, a espreitar para a sua casa. Depois partiram.
É sábado. Continua sentada na ponta lateral da cadeira, com elegância, sustém a barriga, junta as pernas e eleva os ombros. Espera. Um dia ele vai chegar às quatro da tarde, as horas que marca o relógio de pulso que ele lhe ofereceu pelo natal, dourado, elegante, mas que por não ter sol, ela guardou no fundo de uma gaveta escura com cheiro a tempos idos.
In: Contos de Macau
Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca 2021
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“Uma obra de grande lirismo. As narrativas dos vários contos deixam transparecer uma elevada qualidade estética e um excelente domínio da linguagem. A atmosfera da cultura oriental está muito bem representada, seduzindo a atenção do leitor”.
. Júri do Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca 2020 .