IN: "O Livro do Império", cap."Os apontamentos de S. Vicente", pág. 243 _____________________
D. Henrique[i] mandara informar com dias de antecedência que vinha a Lisboa. Ficaria acomodado no Palácio dos Estaus, Casa de Despacho da Santa Inquisição, que muitos juízos ali tinha pendentes. Havia que decidir sobre os autos-de-fé propostos para Lisboa e como julgar com mente sã o processo de Damião de Góis. Tinha este notável do reino tantas almas para incriminação como tinha de notável amparo. Uma dor de cabeça mais política que religiosa, e que, por isso, merecia o seu empenhamento pessoal. Também as Lusíadas estavam nas suas apreensões, pelo que dera nota para chamarem para audição particular D. Manoel e o próprio poeta – queria conhecê-lo pessoalmente.
Chegara à capital com um cortejo de rei. Trazia um largo séquito de frades. À frente, abrindo caminhos, seguia uma guarda armada a cavalo, a que tinha direito como Inquisidor-Mor. Apresentou-se nas ruas da capital numa carruagem cedida por el-rei, seu sobrinho-neto, com as cortinas de couro corridas, barrando assim o achegar de gentalha com pedidos de indultos ou de esmolas. Impedindo também o atirar de pedras por mãos escondidas – soía acontecer por vezes, que havia bandalhos para tudo. Era uma viatura confortável, do melhor que havia no reino. Já não tinha o habitáculo assente diretamente nos eixos das rodas – o que causava enorme trepidação naqueles caminhos escabrosos -, mas sim suspenso sobre o rodado através de fortes correias de couro fixas que amorteciam os solavancos. Mas o que o distinguia era o tejadilho purpúreo, que dava sinal da sua condição, e os faustosos ornamentos em talha dourada. Uma “custódia rica para um papa-hóstias” diziam os detractores das riquezas do clero.
“Não seria mais pecaminoso usar o santo nome de Deus em vão e o nome dos santos em fábulas mundanas? E que santo estaria contra os portugueses em tão ousada jornada, não me dizeis?”, perguntou o Cardeal-inquisidor. “O próprio diabo?”
No primeiro dia conversara bastamente com Frei Bertholameu Ferreira sobre a obra de Camões. Um abocamento privado que se alongara noite dentro, já que muito havia a ler e decifrar – tinha o poeta uma escrita cheia de linhas versadas, mas sobretudo, entrelinhas a exigir cuidados.
O ambiente estava escuro. Praticamente só havia luz na mesa – uns candelabros em metal com velas grossas de cera de abelha, que iluminavam os rostos e os papéis. Tinham uma ou outra vela ao longe e junto à peanha enegrecida de S. Vicente que observava a conversa ladeado dos seus corvos, de pena em riste, como que querendo tomar apontamentos sobre a reunião. Ao longo da noite pôde o santo anotar que se entendiam os dois religiosos sobre muitos dos pontos essenciais: o primor da obra era dado assente; a excelência da escrita tornava-a sublime; era assim uma obra ímpar em Portugal e no mundo cristão; era também a herança de um espírito português para as novas gerações. Assim sendo, como censurar tal obra?
Apontava Frei Bertholameu, nas suas anotações, pequenos erros, latinismos, discrepâncias históricas… abrindo as mãos como numa pregação, o Cardeal citou o grande poeta, Horácio: “…ubi plura nitent in carmine, non ego paucis offendar maculis – quando é muito o que brilha num poema, não serei eu ofendido por umas tantas máculas!”. Assunto encerrado.
Tinha ainda a questão das fábulas pagãs. O longo Poema que cantava a expansão da fé cristã estava povoado por um ror de deuses gentios. “Uma imitação servil de Homero”, aludia Bertholameu. “Aqueles deuses pagãos são anteriores ao Cristianismo, ninguém os acredita já. Para mais não servem agora, que para darem corpo ao fingimento poético das naturezas humanas. Sinto que há até um tom jocoso naquele Olimpo sem um fio de virtudes, em que esses simulados deuses muito se amofinam e nada mudam do que é a Ordem Divina!”, retrucou o Cardeal. “Não seria mais pecaminoso usar o santo nome de Deus em vão e o nome dos santos em fábulas mundanas? E que santo estaria contra os portugueses em tão ousada jornada, não me dizeis?”, perguntou o Cardeal-inquisidor. “O próprio diabo?”
Persignaram-se rapidamente os religiosos. Cantar o diabo numa epopeia não era de bom-tom, era dar palco à heresia. “Vade retro Satana, Numquam suade mihi vana.”[1] Fizeram os dois o sinal da Santa Cruz sobre o peito. “Melhor, não.” Concordaram. “Deixemos então passar, tanto mais que as cousas santas e sérias, as trata ele com a gravidade devida… diz mesmo, que Deus peleja, por quem estende a fé da Madre Igreja”[2], arrematou D. Henrique.
(Mais um assunto encerrado, anotou S. Vicente.)
Mas havia o célebre Canto IX que esbarrava na teologia. O festim em que “vêm todos os Cupidos servidores, beijar a mão à Deusa dos amores”.
“É impossível fechar os olhos a tanta concupiscência, Eminência, impossível!”, retorcia-se o frade dominicano agastado com a tal ilha de Vénus.
“…Ali quer que as aquáticas donzelas
Esperem os fortíssimos barões
(Todas as que têm título de belas,
Glória dos olhos, dor dos corações)…”[3]
Com o polegar e o indicador, D. Henrique esfregava o queixo barbeado e ia fazendo caretas sem que disso se desse conta.
“Caro Bertholameu… acaso leste este canto em privado?” Estranhou o frade tal pergunta, mas respondeu. “Sim, Eminência… em resguardado!” E continuou o Cardeal. “E acaso tal leitura vos instilou vontades… percebeis?
“…a fermosa Deusa lhe aconselha
O que ela fez mil vezes, quando amava;
Elas, que vão do doce amor vencidas,
Estão a seu conselho oferecidas…”[4]
“Eminência, não sei que dizer…”, remexeu-se o frade no banco, deixando cair os olhos ao chão e retorcendo as mãos uma na outra. “Sou vosso amigo, podeis falar. Mas sou, sobretudo, confessor… tudo o dito restará em sigilo…!”, incentivou o Cardeal. “Sabei, Senhor, que estas palavras são tomadas de imagens que nos tolhem o pensar e nos confundem os sentires…”, balbuciou o frade, mostrando vergonha nos olhos.
“…Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos,
Mas, mais industriosas que ligeiras,
Pouco e pouco, sorrindo e gritos dando,
Se deixam ir dos galgos alcançando…”[5]
“Despertam as partes adormecidas do corpo… pois que temos em nós um caçador por natureza… e se torna mais forte o desejo da caça que o caçador, e é impossível conter a frenesi do sangue que brusco nos acalora os sentidos. Quanto mais lemos mais nos encandece, e mais queremos ler… que deve ser cousa do demónio, este não parar de ler!”
“Outros, por outra parte, vão topar
Com as Deusas despidas, que se lavam;
(…) À vergonha da Deusa caçadora,
Esconde o corpo n’ água; outra se apressa
Por tomar os vestidos que tem fora.
Tal dos mancebos há que se arremessa,
Vestido assi e calçado (que, co a mora
De se despir, há medo que inda tarde)
A matar na água o fogo que nele arde…”[6]
“Sabei que rezo e me deploro, mas há algo interior que não refreio. Posso suster as pernas, a mão, mas não o que por dentro me toma… Sabeis do que falo? Claro que não sabeis, Eminência, absolvição vos peço, Senhor, pelo atrevimento. Vós sois forte na continência. Perdoai as palavras de um homem fraco…”
“…Quis aqui sua ventura que corria
Após Efire, exemplo de beleza,
Que mais caro que as outras dar queria
O que deu, pera dar-se, a natureza…”[7]
“Não sei de mim, nem reconheço este meu corpo de tão eriçado que fica. Nem a respiração é minha, que ofegante fico como enfermo, e só me apetece deitar mão do que não devo. Deitar mão do que é pecado, entendeis, Senhor? Como o podereis entender, que isto é tortura de gente fraca e sóis vós um esteio de virtude…”
“Oh, que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves!…”[8]
“E, Senhor, não tendo a matéria do demo onde me agarrar – porque Nosso Senhor me preserva de tais companhias -, se me perde a mão onde não devo… onde o pecado se me aloja por força da natureza. E todo o inferno se esbraseia na carne, “em doces jogos e em prazer contino” com o ardor da bestialidade que toma conta de mim.”
(Porventura, aqui deixa S. Vicente de tomar notas…)
“E assim, Eminência, sem que me resista, pois sou fraco, gota a gota, se perde a semente cuidada no meu corpo de homem casto.”
E erguendo a sotaina branca do seu hábito de frade dominicano, mostra Frei Bertholameu um outro tecido grosseiro que lhe zurzia o corpo em contacto com a pele. E erguendo ainda este pano, mostra a perna, com um pequeno cinturão metálico afivelado na coxa, dotado de pequenas ponteiras afiadas que marcavam a carne fortemente, ao ponto de se mostrar arroxeada em seu redor, ainda que sem sangrar. “Antes subjugo o meu corpo e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha de alguma maneira a ficar reprovado”[9], murmura o frade, citando o apóstolo S. Paulo, de rosto baixo e penitente, mostrando suas fraquezas mundanas.
O Cardeal-inquisidor ficou surpreso. Levantou-se, deu uns passos e colocando a mão sobre o ombro do frade, exclamou: “Irmão, a submissão da Carne ao Espírito, desprende a pessoa das cousas terrenas, purifica e embeleza a alma, e tudo alcança em Deus, até o perdão!”
Frei Bertholameu baixa as roupagens e mantém o rosto contricto e penitente. Senta-se o Cardeal e afirma: “Temos de regrar as heresias de tais versos insidiosos. Amanhã falarei com esse tal de Camões. Por esta noite vou recolher-me que se faz tarde e preciso repousar o corpo. Lerei de novo o Canto que tanto vos perturbou, com olhos de inquisidor, mas com os cuidados de quem não está acima das tentações de qualquer homem. Assim, peço a Deus que vos dê a acalmia do perdão, me resguarde das instigações do pecado e me dê a luz de ajuizar tal obra… Ide em paz, irmão Bertholameu. Rezarei por vós. Rezai vós por mim!”
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“Se um Eça do nosso tempo se atrevesse a perguntar a João Morgado – Filho, tu estavas lá? – teria rigorosa resposta – Sim, estive lá. Porque a expressão aliciante da sua prosa consegue despertar a convicção de que o autor estava efectivamente esteve lá, e tudo o que diz tem igual autoridade à dos documentos que lhe permitem enriquecer a crónica dos acontecimentos, que recria e medita com a minúcia do seu espírito criador”,
Prof. Adriano Moreira Apresentação da obra, 17.DEZ.18
Artigo OBSERVADOR
[1] Afasta-te, Satanás / Nunca me tentes com coisas vãs.
[2] Os Lusíadas, Canto X, 106.
[3] Os Lusíadas, Canto IX, 22.
[4] Os Lusíadas, Canto IX, 50.
[5] Os Lusíadas, Canto IX, 70.
[6] Os Lusíadas, Canto IX, 73.
[7] Os Lusíadas, Canto IX, 76.
[8] Os Lusíadas, Canto IX, 83.
[9] São Paulo, I Coríntios 9,27
[i] O Infante D. Henrique (1512 – 1580), oitavo filho do Rei D. Manuel I, dedicou-se à vida religiosa, tendo exercido altos cargos eclesiásticos. Esteve na iminência de ter sido eleito Papa e foi Inquisidor‑Geral do reino (1539 ‑1578). De 1562 a 1568 e em 1574 assumiu, em simultâneo com as funções eclesiásticas, a regência do Reino e foi Rei de Portugal de 1578 a 1580.