IN: Meio-Rico (Contos) _______________
– Ó pai, conta lá mais histórias do Tomé…! – pediu ele ao serão, farto de contar as moscas e ouvir o crepitar do lume. A mãe, que estava na banca a por o bacalhau de molho, também ajudou – Vá lá, conta mais uma… sabes tantas!
E ele contou:
Como os padres não ganhavam dinheiro e precisavam de sobreviver, de tempos em tempo, o sacristão, o Tomé, andava de casa em casa a pedir uns dinheiritos pelas almas que estavam no céu. Todos tinham familiares no outro mundo, pelo que, para aliviar a consciência, lá iam dando uns cobres para que Deus olhasse pelos seus. Ao fim do dia o seu saco de veludo vinha carregado. Era mais o peso que o valor, mas mesmo assim, era uma jorna proveitosa. O pior era a dor de pernas de calcorrear a aldeia e, sobretudo, as quintas em redor. Assim que ao fim do dia, aproveitava para parar na taberna do Tónio, cruzava as portas de vaivém e dizia:
– Ó Almas, eu entro e Vós entrais… Eu bebo e Vós pagais!
E tirando o dinheiro do saco, punha umas moedas pretas no balcão de mármores e pedia um penalti à Eusébio… um copo de vinho bem cheio, daqueles que alegrava a alma – ainda neste mundo!
Aliás, o Tomé sempre fora conhecido por ter a boca permanente seca, e ainda que o médico lhe dissesse uma e outra vez que “vinho nem vê-lo”, ele fazia questão de fechar os olhos e entornar uns canecos valentes. De tal modo, que um dia, quando acompanhava o padre numa visita pascal, a caminho de uma quinta, deparou-se com um coelho a cruzar o seu caminho. Já quente por dentro com o que bebia de casa em casa, e quente por fora, com o sol a dar-lhe na testa, perdeu as estribeiras e atirou-lhe com a Cruz e o Cristo na tentativa de apanhar o bicho. O padre quase estrebuchou com tamanha heresia. E lá o obrigou a rezar umas Avé-Marias pelo caminho até chegar à casa do próximo quinteiro.
Chegados, as crianças gritaram Aleluia, o quinteiro lançou umas moedas ao ar e eles desunharam-se pelo chão para ver quem apanhava mais. O padre entrou dentro de casa com o Tomé. Beberam mais um copo de vinho que era “sangue de Cristo” e falaram do tempo que estava mal para a agricultura, como se o senhor prior pudesse interceder junto de S. Pedro e mudar os climas.
Comeram uma fatia de bolo de azeite e umas bolachas. O agricultor deu a sua ajuda, uns dinheiritos que tinha guardado numa bandeja, cobertos por folhas de oliveira, para que não vissem o real valor que dava (em muitas casas era mesmo só folhas de oliveira, no meio não ia dinheiro nenhum, mas sempre se disfarçava perante Deus a triste pobreza).
A páginas tantas, o padre e o sacristão tomaram o último copo, o da abaladiça. No prato já só havia duas bolachas, uma de baunilha e anis e outra de chocolate, com uma prata colorida. O Tomé não se fez rogado, toca de apanhar a de chocolate. O padre que já ia de mão no ar, ficou danado.
– Não sabes que é de má educação tirar a melhor? … devemos começar sempre pela de somenos! – dizia ele.
– Se fosse o senhor padre a tirar primeiro, qual tirava?
– Ora, eu teria tirado a bolacha de baunilha…
– Ora, então já a lá tem, para quê tanta discussão! Não compreendo… de todos os modos eu comia a de chocolate!
Todos riram menos o clérigo que ficou agastado com o desaforo do seu sacristão. Mas não havia tempo a perder, faltavam visitar ainda muitas quintas e o dia apresentava-se longo e fatigante.
– Vá lá, despacha-te! Dá o Senhor a beijar que temos de sair…
O Tomé agarrou na Cruz e aproximou-a do rosto do quinteiro. Ele incrédulo olhava e não dava o beijo, o resto da família, igual. Por fim, lá exclamou:
– Mas, o crucifixo… não tem o Cristo!!!
– Ó diabo… – exclamou o Tomé com cara de espanto – Ai o danado… querem ver que foi atrás do coelho!
Covilhã, 1987
In: Meio-Rico
Contos, Ed. Kreamus
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