O conto “Costureira” foi editado em Macau numa colectânea de contos, “Seis em Ponto”, no âmbito do The Script Road – Macau Literaly Festival, evento em que participei em 2017. Este conto tem a particularidade de ter edições em inglês e chinês. Uma oportunidade de conquistar novos públicos…
Um agradecimento a Ricardo Pinto e Helder Beja. Também a Gilberto Lopes, Marta Pereira e António M R Martins.
“Minha mãe foi a costureira mais famosa de Macau. Todos a conheciam ali na rua dos Mercadores, a dos passeios em calçada portuguesa. Por ali cheirava a biscoitos de amêndoa e havia sempre gente a correr para comprar carnes doces ou peixes salgados. Costurava roupa na máquina e sonhos na cabeça. Porque os sonhos, caso não saibam, também precisam de ser desenhados a giz e moldados com aquela matéria de que são feitos os sonhos – que é a mesma de que é feita a vida. E é preciso chulear as diferentes partes do sonho para não esgarçarem e só depois se vão cosendo com linha fina mas resistente, até ganharem a sua forma acabada.
É preciso ser uma costureira muito boa para que os sonhos nos assentem que nem uma luva. Minha mãe foi sempre uma excelente
costureira, sei do que falo porque já vesti muitos dos sonhos coloridos que ela fez para mim, desde criança.
Quando a noite chegava, ela preparava-me uma cama entre os tecidos e eu adormecia agarrado ao meu grou de origami, a vê-la trabalhar, encantado com o seu sorriso. A sua máquina de costura, uma “Butterfly”, era a minha canção de embalar, porque a melodia é apenas a forma como arrumamos os sons na nossa cabeça – essa é a essência da música. E podia lá haver harmonia mais bela do que a minha mãe a costurar sonhos com sorrisos?
Ela pedalava a noite inteira, curvada sobre a máquina, sobre a vida, curvada sobre o peso de tudo o que pesa numa pessoa. E mesmo quando o sol lhe morria na janela, e adormecia o barulho da rua, não se lhe acabava o dia. Continuava a trabalhar serão adentro, acasalando panos que se transformavam em calças, peças de algodão de onde nasciam camisas de longas mangas e golas de mandarim…
– Mãe, ainda estás a costurar sonhos? – perguntava eu quando acordava a meio da noite e a via ainda de agulha e dedal, alinhavando um tecido de cetim cor-de-rosa.
– Sim, meu filho, neste cheongsam florido vai o sonho de uma menina arranjar namorado na próxima festa do Yuan Xiao!
E eu sorria e voltava a adormecer, orgulhoso da minha mãe, porque das suas mãos saía a felicidade das pessoas. Ela trabalhava todas as noites e eu agora entendia porquê, é que era de muita responsabilidade fazer as pessoas felizes.
A pedido de minha mãe, um vizinho trazia-nos todas as noites noodles quentes que nos aconchegam. Era das poucas pausas a que se dava o direito. Por vezes descansava os olhos por minutos. Depois de me dar um beijo, retomava os seus afazeres, envolta em fumo de incenso e na música de um velho rádio a pilhas. Era vê-la seroar noite dentro, sempre a pedalar na máquina, horas e horas, naquela máquina que me embalava com o seu laborar ordeiro, com o sobe-e-desce da sua agulha incansável e um sem fim de linha que, tal como a noite, parecia nunca mais acabar. …. (…) ( Continua)”
