A Menstruação, o inferno que recorda às mulheres o seu pedaço de céu

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A 'menstruação', a relação com o pecado e a púdica moral _____Diário dos Imperfeitos, pág 83____

 

«…A mãe aqueceu-lhe um jarro de água que lhe colocou na casa de banho, ao fundo do corredor, levou-lhe toalhas e ordenou-lhe que se lavasse: «…e limpa-te ai em baixo», disse, apontando para o seu baixo-ventre com desdém. De pé, Laura baixou a cabeça e viu uma mancha que já ruborizava a camisa de dormir, e um fio de sangue espesso que lhe escorria pelas pernas. Colocou as mãos em concha sobre a auréola e manteve a cabeça baixa. A mãe agarrou-a por um braço e levou-a na sua frente. Ela caminhava de forma afectada, tentando não abrir as pernas. Sentia um enchumaço de toalhitas ensopadas dentro das cuecas, e os fios de sangue que se desprendiam com o andar. A mãe puxava-a pelo braço, e ela seguia-a meio chorosa, com o cabelo caído e despenteado sobre o rosto, mantendo uma das mãos sobre o ventre, tentando manter as coxas unidas, abrindo as pernas só a partir dos joelhos para poder dar as suas passadas afectadas. O pai estava na porta da sala. Viu-o de relance. Viu a sua figura na ombreira da porta, entrecortada entre a luz que vinha do televisor. Não viu o seu rosto, mas adivinhou o seu ar de desdém pela sujidade do seu corpo, pela sua alma imperfeita. Caminhou arrastada, sentindo a humidade a escorrer pelas pernas, o revolutear do abdómen, as náuseas que sentia do seu próprio cheiro. Sentia-se gelada, pelo frio da casa, pelo frio olhar do pai entrecortado na ombreira da porta, pelo frio da vergonha, pelo frio da passadeira de oleado por onde caminhava descalça como uma prisioneira pelos corredores do cárcere.

«A menstruação é a parte do inferno que recorda às mulheres o seu pedaço de céu – serem férteis, fontes de vida… que é uma espécie de centelha de divindade! Há algo mais bonito?» (Teatro: adaptação da ASTA – Associação de Teatro e outras artes, da Covilhã.)

Os pés enregelados dentro do alguidar da água morna deram-lhe um laivo de prazer, mas logo interrompido pela mãe que a mandou despir – tudo menos a camisa de dormir, pois não a queria nua à tua frente. Desde os seis anos que estava proibida de se ver nua, mesmo quando estava sozinha. Na casa de banho – onde só havia um pequeno espelho – banhava o seu corpo por partes; os pés, as pernas, as partes íntimas, depois o tronco, os seios, e já na bacia de cerâmica branca, os cabelos longos e o rosto. A porta da casa de banho não tinha chave, apenas encostava. A sua mãe por vezes vinha espreitar; era capaz de jurar que, por vezes, o seu pai também.

– Tira-me essa porcaria! -, gritava a mãe. E ela tirou a sua roupa interior, devagar, pernas abaixo, sentindo como se desapegavam os toalhetes dos seus pêlos púbicos, afogados em sangue maçado, escuro. Dorinda pegou em tudo aquilo com nojo para dentro de um saco plástico – Vão para lavar…!

A mãe recusava-se a comprar pensos higiénicos – sempre tivera vergonha de os comprar. «As intimidades não são para andar nos balcões da lojas…», dizia. Devia julgar que era a única a ter aquele incómodo mensal. Como se a D. Albertina da mercearia não tivesse incómodos, ou não soubesse dos incómodos regulares de todas as outras mulheres. Comprar pensos absorventes seria admitir publicamente que o seu corpo tinha sexo. Ninguém precisava saber disso. Até ela gostaria de se esquecer disso. Mas o corpo relembrava-lhe todos os meses as moléstias de ser mulher, obrigava-a a confrontar-se com as intimidades que abafava em toalhetes de algodão – laváveis, reutilizáveis, recolocados de forma pudica no recato do lar. Nos dias de maior fluxo, quando era mais nova e tinha de ir com os pais trabalhar no campo, usava umas toalhas de turco, maiores, compridas, grossas – mal podia fechar as pernas. Disfarçava o andar escanchado em saias largas, rodadas. As toalhas iam do umbigo às costas; usava um cinto apertado que roubara discretamente ao seu irmão mais velho, para as cingir ao corpo e não saírem do lugar. Agora, que de forma precoce tinha chegado à menopausa, sufocava de calores mas agradecia a Deus por já não ter os males do sangue. Mas para castigo, vinham as suas filhas relembrar-lhe que também elas tinham sexo.

– No Paraíso, Eva deu a maçã a Adão e depois pecaram… – contou a mãe, de ar contrito e voz abafada, enquanto desdobrava uma toalha – O sangue foi o castigo divino que o Senhor lançou sobre Eva para que nunca esquecesse o pecado da tentação e da carne… Um castigo que todas as mulheres pagam, que se propagou por todas as gerações das gerações!

Incrédula com o que ouvia, Laura encarou a mãe e teve vontade de lhe bater, mas nada disse. De pé, dentro do alguidar, lavou os pés, as pernas, e na mesma água, lavou as suas partes pudendas; meteu as mãos por baixo da camisa de dormir e esfregou os seus pêlos e as suas carnes íntimas com sabonete de glicerina – com cheiro a lavanda. A mãe observava, de olhos tensos, com o medo que esse esfregar levasse a alguma forma de prazer.

A MÃE RECUSAVA-SE A COMPRAR PENSOS HIGIÉNICOS – SEMPRE TIVERA VERGONHA DE OS COMPRAR. «AS INTIMIDADES NÃO SÃO PARA ANDAR NOS BALCÕES DA LOJAS…», DIZIA.

– Diz-me, Laura, tu e esse teu namorado, já alguma vez…? –  questionou a mãe com meias palav

ras e vergonhas por inteiro, perturbada com a pergunta, mais receosa ainda da resposta.

– Não! – respondeu a Laura de forma seca.

Confirmava-se. Afinal já sabiam do namorado, pensou, enquanto despejava a água suja do alguidar e deitava do jarro limpa mas quase fria. A mãe teve um suspiro, saíram-lhe os medos pelas narinas e o coração passou a bater mais calmo.

– Minha filha, tu sabes que os homens…

– Por amor de Deus, mãe, não vai começar com essa ladainha, pois não? Por favor, hoje, não…

A mãe calou-se e retirou-se de rosto embaçado, deixando-a só na casa de banho fria, iluminada pela luz fraca de uma lâmpada sem candeeiro, no alto do tecto. Laura permaneceu com os pés na água tépida, e com um toalhete foi lavando a barriga, os seios que estavam enregelados, em pele de galinha. A camisa de dormir, já ensopada, agarrava-se ao corpo, não deixava esfregar a pele… Laura sentiu uma irritação crescente, atirou ao chão o toalhete, o sabonete escuro que cheirava a lavanda, levantou furiosa a camisa de dormir que se filava ao corpo, rasgou-a, esgarçou o tecido, uma e outra vez, puxou os pedaços desesperadamente, arrojou-os ao chão. E ali ficou, nua, completamente nua, exposta aos olhos de Deus, mil vezes nua, acabando de se lavar apenas com as lágrimas…»

 

(…)

«Como se traduz por palavras o nojo que se sente pelo corpo que se ama?», perguntou ela. «As mulheres sentem-se sujas, mas orgulham-se do seu sangue. Odeiam quando ele desce, odeiam quando não desce. Abominam os seus incómodos e choram quando deixam de incomodar. Diga-me, como se traduz tudo isto por palavras…?»

 «Dor da vida, acho que é assim que se pode traduzir!», respondi de pronto.

«Dor… da vida? Como assim?»

«Minha avó dizia: a felicidade é um chá feito da raiz da dor. Como nos partos, dizia ela – em que as mulheres sofrem no momento mais belo das suas vidas. Acreditava que a essência das coisas era feita de contrários, de céu e de inferno… Por isso, digo eu, a menstruação é a parte do inferno que recorda às mulheres o seu pedaço de céu – serem férteis, fontes de vida… que é uma espécie de centelha de divindade! Há algo mais bonito?»

 

Romance adaptado ao palco pela ASTA – Associação de Teatro e Outras Artes

 

 

João Morgado IN: Diário dos Imperfeitos

Romance, 2017, Casa das Letras (LEYA)

Prémio Literário Virgílio Ferreira 2012

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“João Morgado vive por dentro da pele dos personagens. Homens e mulheres. Tem palavras para as emoções e para as coisas mais secretas da vida”

Lilia Tavares

Poetisa, Editora da página “Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen”

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