Excerto de "Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso" ____________
«…O capitão-mor aproveitou para continuar com a reparação das naus e o padre Valderrama retornou com as missas em torno de uma enorme cruz de Cristo entalhado por dois carpinteiros. A marinhagem não contestou. Agradecia estar ocupada com algo, nem que fosse com as preces dos capelões. Ia uma das eucaristias a meio, quando se levantaram todos os homens deixando o frei com o latim atravessado na boca e a cara de espanto. Corriam adoidados pelo meio da neve, tombando uns, gritando outros… Magalhães estava diante do espelho a tosquiar a barba, quando foi avisado. “Vem lá gente, meu capitão! Uma das sentinelas deu o aviso!” Este baixou a navalha e mostrou o seu ar surpreso. “Gente? Neste fim de mundo? Como assim…?”
Na praia um homem avançava a medo em direcção a eles. Dava uns passos e parava. Recuava. Depois ganhava coragem e dava mais uns passos em frente. Lá muito ao fundo, vinham mais uns quantos. Não muitos. Magalhães pediu aos homens que pegassem nas armas mas que se mantivessem disfarçados sem que os vissem. Ficaram ocultos numas paliçadas e dumas estacas aguçadas que protegiam o acampamento. Veio a correr e tomou a dianteira dos homens que se dirigiam à praia.
O estranho continuava a aproximar-se, embora a medo. “É enorme…”, comentou o jovem Rebelo, já posicionado ao lado do capitão com os seus cabelos encaracolados. Sim, mostrava ter um canastro alto, muito alto. Estava acobertado por peles grossas, mas de peito aberto e pernas nuas. Só usavam uma pele fina para cingir o mangalho entre as pernas.
“Grande patagão q’ele tem”, comentou Magalhães sem poder conter um sorriso entre as barbas fartas….”
Tinha uma fronte larga e uns cabelos brancos desgrenhados. Um rosto pintado cor de sangue e a cova dos olhos de amarelo. Nas bochechas pareciam dois corações desenhados.
“Tomaos de cuidado, capitán! Trae con él un arco y flechas…”, alertou Espinosa, sempre cuidadoso. Sim, trazia numa das mãos um arco curto, e segurava na outra um feixe de flechas de cana, não muito compridas, cujas ponteiras não eram de metal, mas sim de pedras afiadas. Umas brancas e outras pretas. Quando estava já próximo, a meia dúzia de palmos de distância, Magalhães tirou calmamente a espada. O homem parou. Mas o capitão colocou-a no chão e voltou a mostrar a palma das mãos. Depois pediu-lhe com gestos, que ele poisasse as flechas. Este compreendeu e deitou-as para chão. Depois começou a apontar para eles e para os céus.
“Deve julgar que somos uns deuses…”, atirou o capitão Álvaro de Mesquita, com a aragem fria a ondular-lhe a barba já esbranquiçada. “Pensa que viemos dos céus!”.
Magalhães riu-se, passando a mão pelo rosto. De seguida apontou para o ar e depois para si próprio. Ao mesmo tempo que acenava com a cabeça afirmativamente, como que dizendo que, sim, que vinha dos céus. Então, aquele ser meio selvático começou a cantarolar e a ensaiar uns passos de dança de forma desengonçada, como se fosse um ritual qualquer e a lançar um pó branco sobre a cabeça [1].
Com o peso, cravava bem os pés na neve. “C’um raio…”, exclamou Rebelo de novo. “Este mafarrico deita quase dois de nós.” E começou a dançar ao lado dele, imitando-lhe os gestos.
A sua altura impressionava todos os que o olhavam. Ordenou Magalhães que lhe trouxessem comida e lhe dessem uns presentes. Provou um pouco de carne, uns frutos secos, biscoitos [2], e bebeu muita água, como se estivesse a morrer de sede. Pediu mais. “Este não deve saber derreter neve…”, exclamou alguém e todos riram. Ele estancou os movimentos e olhou em volta desconfiado. O capitão fez sinal para que todos se calassem.
“Não o assustem!” Sempre mais ousado, Rebelo chegou-se à frente, colocou-se a seu lado, chegava-lhe um pouco mais que acima da cintura. Olhou para os pés e deixou-se rir – o seu pé envolto em peles deitava dois dos dele. “Grande patagão q’ele tem”, comentou Magalhães sem poder conter um sorriso entre as barbas fartas….”
(…)
Ultimados os trabalhos nas naus, estavam estas já ao largo, prontas a navegar, com ponteiras de aço na proa para rebentar com os gelos daquelas paragens. Os homens andavam à cata de lenha e entretidos na caça para exercitar o corpo. Os patagões era caçadores sabidos. Para a pesca, alguns tinham uns gansos negros, de peito branco[1] – como os que tinham caçado antes numa ilhota da Baía dos Trabalhos. Atiravam os animais para dentro de água, bem laçados pelas patas com uma liana. Estes baixavam em muitos palmos de fundura, catavam um peixe com o bico e quando revinham à superfície era-lhes retirado do bico. “Velhacos d’um raio…”, atirou Álvaro de Mesquita. “Reparai… põem uma manilha no bico dos bichos para que não o abram de todo e estes não embuchem os peixes!”
Para a caça, usavam a cria dos “camelos com cara de asno”. Esta era presa a uma árvore, para que o seu relincho assustado pudesse chamar os outros da sua espécie, que eram depois mortos com flechas e fortes mocadas daqueles gigantes. Um animal daqueles nutria a famílias por uns bons dias e ainda sobejava a pele para cobrir o corpo ou uma das tendas quebradiças que eles armavam e desarmavam a cada dia.
Comiam a carne crua, juntamente com uma raiz adocicada a que chamavam “chapae” e quando eram animais pequenos, como ratos, nem sequer os esfolavam – eram simples petiscos naquelas bocarras enormes e de bons dentes. Por vezes, por sentirem o estomago revolto, enfiavam uma flecha boca afundo, até vomitarem. E logo se davam a novos banquetes.
Estavam já nos meados de agosto, quando começou o tempo do degelo – já se via a areia da praia, mas estava encharcada das chuvas. Havia cada vez mais patagões a circundar o acampamento. Uns acercavam-se, outros miravam na distância. Espinosa estava a cada dia mais nervoso e disso deu mostras a Fernão de Magalhães.
“Son ya demasiados. Es peligroso!”, rabujou ele uma vez mais, e logo tratou de colocar o capacete de aço e a couraça sobre o peito.
Sim, eram cada vez mais. Lombardo também mostrava inquietação e avisou: “Alcuni sono diversi…” Na verdade, alguns eram diferentes. Os últimos patagões que tinham avistado, pareciam mais altos, robustos e tinham pinturas diferentes.
“Podem ser de uma tribo diferente”, alvitrou Rebelo, ajustando a tira de cabedal que lhe segurava os cabelos revoltos. “E serão tão amistosos como os demais?”, questionou Magalhães, sentando-se para descansar a perna combalida. Ninguém sabia…”
Capítulo “Os patagões”, pág.162
[1] Cormorão ou Corvo-Marinho. Pelo seu aspecto, é conhecida também como Ave-Pinguim.
[1] Algumas tribos do hemisfério sul, deitam areia ou água na cabeça como sinal de paz.
[2] Uma espécie de bolacha que era cozida duas vezes (bis) para se conservar mais tempo. A armada levou 21 380 arráteis de biscoitos, cerca de 10 000 quilos, que custaram 372 510 maravedis.
Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso
Romance – Esfera dos Livros – 2019
“De Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso destacaríamos com alto valor qualitativo a dimensão humana das personagens, a narração dos hercúleos tormentos colectivos sofridos pela tripulação ao longo da viagem, bem como a descrição in actu das características psicológicas individuais, nomeadamente a coerência ao longo de todo o romance por que é desenhada a personalidade de Fernão de Magalhães, homem obsessivo, a raiar os limites do fanatismo, capaz de morrer na defesa da sua ideia…”
Miguel Real, Crítico Literário, Jornal de Letras, 23.10.2019