«Um filho. Emília já tinha tido um filho, por dias, por semanas, um filho dentro dela, apenas dentro dela, pequenino, tão pequenino que só ela o sentia, mas de tal forma entranhado na carne que era mesmo ela a dividir-se. Tinha tido um filho, dentro dela, apenas dentro dela – até que um dia o sugaram por entre as suas pernas abertas. Já passou um ano, mas de noite ainda acorda com o barulho da máquina a vasculhar dentro dela, a aspirá-la por dentro, como se fosse uma carpete suja a quem se tira a impureza de um filho malquerido pelo pai. Um filho. «Coisa pequena, quase nada», dissera ele. (E ela a desejar que lhe sugassem todas as coisas pequenas que ele tinha entre as pernas).
@rt_lichtbild & @claudi_s84
A ela tiraram-lhe um peixe pequeno, quase nada, é verdade, mas parece que lhe sugaram todo um mar de dentro dela, tal o vazio que lhe restou. E ela a perguntar, como se pode viver com este vazio, este enorme vazio…? Queria falar disso, precisava falar disso, mas jurara a si mesmo nunca falar disso a ninguém. Tinha-se imposto a si mesma um voto de silêncio…
Mas o silêncio liberta-nos de tudo, menos de nós. Há sempre um ecoar por dentro. Nem os loucos são vazios. Nem as estátuas. Nem Emília, que acordava de noite com o barulho da máquina a vasculhar dentro dela, a aspirá-la por dentro como se fosse uma carpete suja, a levar-lhe uma parte dela, e ela, tantas vezes já rendida, de pernas abertas, a desejar que a máquina a levasse por inteiro.
Lembrava-se do dia, da hora, da lâmina a rapar-lhe as intimidades, das agulhas, do cheiro do álcool, do anticéptico, do cheiro da mulher que a olhava com maus modos… depois a cabeça não aguentou, apagou-se. Ficaram só as hemorragias a lembrarem-lhe aquela ferida do tamanho do mar, uma ferida enorme que ainda hoje lhe dói quando toca com os olhos na barriga de uma grávida, na fotografia de uma criança, numa bola de algodão doce, num peluche. Que lhe dói até mesmo quando faz amor – por vezes custa-lhe a sentir prazer, como se o homem que tem dentro dela se perdesse naquele vazio enorme da ausência de mar, e o seu corpo nem desse por ele, permanecesse insensível e frio, talvez com o medo de emprenhar de novo. O corpo tem um medo próprio, um frio.
Porque é que a máquina não a sugou por completo, pensa ela tanta vez, a lacrimejar, a destilar remorsos. Por vezes sente que precisava de falar disso com alguém, desafogar as palavras, mas olha à sua volta e sente que não tem ninguém, ninguém com quem possa desabafar intimidades, não tem ninguém que a entenda, que a oiça sem a julgar. Houve um homem, sim, um homem, aquele homem com quem deveria ter partilhado tudo isto, mas não partilhou, ele nem esteve ao seu lado para lhe dar a mão, um olhar de conforto, uma palavra de força – foi um reles cobarde. Agora também já é passado, e é a última pessoa com quem gostaria de falar sobre este assunto. Para quê? Para lhe dizer que tudo não passara de uma «coisa pequena, quase nada»? Não precisa de ouvir isso, prefere permanecer no voto de silêncio, com as palavras sufocadas dentro dela, embora o eco não a largue, nem a depressão que a desgasta por dentro, nem os nervos que por vezes lhe sobem à flor da pele quando menos o espera…
“Mas o silêncio liberta-nos de tudo, menos de nós. Há sempre um ecoar por dentro. Nem os loucos são vazios. Nem as estátuas. Nem Emília, que acordava de noite com o barulho da máquina a vasculhar dentro dela, a aspirá-la por dentro como se fosse uma carpete suja…”
«Afinal, queres ir ao cinema ou não…?»
«Não, não quero ir à merda do cinema! Ainda não percebeste? Vai tu! Desaparece daqui…», grita ela.
«Mas, que raio te fizeram para estares nesse alarido todo…?»
«Fizeram-me um aborto… a porcaria de um aborto, porquê? Algum problema?», gritou Emília a arrancar a crosta de uma ferida, a expor o sangue, a desafogar as palavras. Podia ter dito que lhe rasgaram uma cova onde cabia o mar, mas ele não ia entender, sabia que não ia entender, os homens não entendem as mulheres a quem roubaram o mar com a desculpa de pescar um peixe pequeno, pequeno, quase nada.
«Um aborto? Mas… estavas grávida de quem?»
«Grávida de quem? Olha, do ordinário que me fornicou e não quis assumir o filho!!», respondeu ela num grito com lágrimas. «De um sem-vergonha de carne e osso, ordinário… Querias que fosse de quem? Da lua, do sol, do espírito santo? Dava-te jeito que fosse do espírito santo? Grávida e virgem como Maria…? Deves julgar que a nossa vida é um romance de cordel…»
Santiago já ouvira esta expressão. Olhou-a de forma intensa, de cabeça perdida, com uma revista nas mãos, dobrada na publicidade ao filme Je te salue Marie. E ali estava ele, especado na sala, vermelho de raiva, atormentado, a imaginar que todas as suas loucuras pretas ou bejes ou azuis, já tinham andado nas mãos de outro homem, a imaginar aquele corpo cheiinho de carnes nas mãos de outro homem, de outros homens, de dezenas, milhares de outros homens, muitos homens, multiplicados pela sua raiva, pela sua fúria… pela sua dor.
«Galdéria, afinal não passas de uma galdéria…!» – foi a vez de ele gritar. «Afinal, andaste com todos antes de mim…. Por isso foste tão fácil! Demasiado fácil…!», gritou ele enquanto saia, batendo a porta, fazendo estremecer o desvão altaneiro onde viviam, e de onde se avistava uma seara rubra de telhas na cidade e, ao fundo, bem lá ao fundo, um niquinho de mar, aquele mar que faltava para preencher a Emília, aquele mar que se fora atrás de um peixe pequeno, pequeno, quase nada. Santiago não lhe perguntara pela dor, pelo eco que ressoava dentro dela, apenas quisera saber que outro macho lhe estivera a regar as entranhas; não lhe perguntara pelos sentimentos, para quê? Sentimentos são palavras, fumo apenas… Só perguntara pela pele, só pela pele…
@der_steinie
“…os homens não entendem as mulheres a quem roubaram o mar com a desculpa de pescar um peixe pequeno, pequeno, quase nada.”
«Tem bom mestre…», resmungou entre dentes.
Agastada ainda pela raiva, mas arrependida pelas palavras desatadas por impulso, ainda correu à janela, ainda gritou aos ares…
«Santiago! Santiago!…»
… mas as palavras só agitaram os pássaros, só acordaram os gatos nos parapeitos das janelas, os velhos que jogavam à bisca de olhos semifechados no resguardo do jardim.
«Santiago!», gritava ela, a chamar a atenção dos homens que desciam a rua, do cigano da esquina, do amolador com a sua bicicleta carregada de guarda-chuvas desasados e uma roda de esmeril para afiar facas e tesouras…. Este respondia-lhe com o som característico da sua flauta de tubos. E ela aos gritos: «Santiago!…»
«Ó mulher, tem lá calma…», atira-lhe a vizinha da outra água-furtada, a pintar as unhas, a mandar esconder um homem nas suas costas. Emília já não gritava para chamar o Santiago, gritava para libertar os nervos, gritava por gritar, para soltar aquela energia que a fazia estremecer por dentro: «Santiago!!» Mas tal como a vida, a rua só lhe devolvia o eco dos seus gritos, que se misturaram por dentro com o eco do seu choro. Emília chorou como há muito já se tinha esquecido de chorar. Quem pode perceber o vazio que restou a uma mulher a quem roubaram o mar de dentro dela?
Se chorar esta noite – perguntava-se ela – e a noite que vem, e a que vem, e todas as outras noites que estão por vir, serei capaz de chorar um mar?…
(…)
Repetia-se a si mesma que tinha feito a melhor escolha, não a melhor mas a única, e acreditava nisso, queria desesperadamente acreditar nisso, mas tinha momentos de fraqueza em que precisava de lavar o corpo. Se tudo fosse tão fácil de lavar como um vómito no chão, se pudéssemos lavar as ideias, as angústias, as dores, as imagens que de pronto nos assaltam – como a imagem de Santiago a chamar-lhe «galdéria», a dizer «por isso foste tão fácil! Demasiado fácil…!» E Emília a lavar o corpo em gestos incompletos, a esfregar a pele por fora, sem saber como esfregar a pele por dentro. A desculpar o sem-vergonha de carne e osso, ordinário – que agora até era seu amigo. A desculpar as palavras de um Santiago despeitado – não pensou neste termo, que nem conhecia, mas… – a perdoar as palavras de um Santiago ressentido, incapaz de lidar com a notícia, assim a seco, saída do nada. Fora culpa dela, não lhe deveria ter contado, pelo menos não assim, de uma forma bruta, como um soco directo no rosto. Ali estava ela, debaixo de água, como sempre, a desculpar toda a gente menos a si própria. E por isso ali estava nua, a lavar a vergonha, os remorsos, a lavar o nojo da pele, a chorar um mar, porque precisava desse mar dentro dela, para se acalmar, para se perdoar.
Nunca seria feliz enquanto lhe faltasse o mar por dentro, a lembrar-lhe que um dia, um peixe pequeno, pequeno, quase nada, tinha partido por culpa do seu medo, e que por isso tinha nojo de si. Ninguém é feliz com nojo de si própria. Nojo.»
«Um romance dentro do romance, feito de uma forma exemplar. João Morgado domina em absoluto as técnicas do romance, a mestria de nos prender, a nós, leitores!»