Excerto da obra "Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso"
18 de Março de 1520, a sul do Rio da Prata – Os raios golpeavam a noite escura e abriam clarões sobre o mar bravo. No alto do mastaréu da gávea via-se um resplendor brilhante, prata e azulado, ondulante como chamas. “Olhai, olhai…” clamavam os marinheiro com o dedo em riste, chamando a atenção dos demais. “É o fogo-de-santelmo[1]…”, gritavam outros. “Que nos guarde d’os demonhos d’este mar!”, suplicavam. Fria e dura, a chuva golpeava as naus com danação – estava assim há dois dias sem folgança. Trazia à mistura um pedrisco de gelo que acometia contra as madeiras num estardalhaço que metia arreceios aos mais bravos e deixava o convés branco, como se fosse uma calçada de pedras alvas e amontoadas.
“Sopla un viento de mil demónios”, rosnavam os marinheiros amedrontados, protegendo-se da ventania com as poucas peles de animais que seguiam a bordo. Alguns envolviam-se em pedaços de velas que tinham rasgado com a navalha para improvisarem uns mantos. Desesperavam com tanto frio, enregelavam-se o nariz e, sobretudo, as orelhas – nem as sentiam. Pesado, de andar arrastado e entufado em peles, Magalhães mantinha-se no convés. Mandara arrear as velas. O pano ensopado enregelava com a friagem e esgarçava com o sopro forte do vento. E caso não rasgassem, insufladas pelos ventos endoidados, as velas podiam vergar as embarcações.
Estevão Gomes, o piloto da nau capitânia, Trinidad, onde seguiam, já fora substituído, apesar de umas luvas de couro, tinha as mãos queimadas pelo gelo, os dedos negros e inchados, a pele a gretar-se. Aos outros acontecera igual. Assim que, tinham amarrado a roda do leme com um calabre e a nau dançava ao sabor das vagas e no amparo divino que os clérigos tanto rogavam nas suas preces, escusos que estavam no breu do porão. A agulha da bússola tinha perdido a tramontana, rodava desvairada.
“Estamos perdidos, capitão…”, exclamou o piloto, Estevão Gomes, com as mãos untadas com banha de animal para acalmar as queimaduras.
“Aqui o inferno é geado, se escaparmos à tempestade, apraza a Deus, vamos finar-nos com este frio maldito”
Fernão de Magalhães viu como o bafo quente lhe saia da boca, tal a friagem que se fazia sentir. Cortava a pele, magoava os olhos. Nem se sentiam as extremidades do corpo, tinha o nariz e as orelhas congeladas. Com a humidade, a perna doente doí-lhe como nunca. Um novo raio despedaçou a negritude daquela noite. Naquele instante de clareza, viam-se as altaneiras vagas de água e pedaços de gelo que arrostavam contra a amurada do navio como se fossem pelouros disparados por canhões de um barco inimigo.
“C’um diabo, estes pedregulhos vão acabar por nos abrir um rombo no casco… estamos perdidos”, exclamou Magalhães alarmado, pois nunca vira tal coisa. Esquecido já das roupas de fidalgo, voltara às suas indumentárias negras como a noite. Em vez do seu habitual chapéu de abas, usava um kufiyyah negro, um lenço grosso a envolver-lhe a cabeça como os usados pelos tuaregues do deserto – não para se proteger do sol, que aqui andava arredio, mas sim, do gelo. Tapava-lhe o rosto, deixando apenas fisga para os olhos. Mostrava-se sombrio por fora e por dentro. Reluzia a vieira de metal que usava no cinturão, a relembrar a sua ligação à Ordem de Santiago.
No meio de toda aquela tempestade, pejada de coriscos e trovões, tudo lhe parecia perdido, ainda assim, murmurou: “Senhor, sinto a Vossa presença…!”
Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso
Romance – Esfera dos Livros – 2019
«Através de uma viagem no tempo e no espaço o leitor pode seguir e encontrar com a segurança, a passo e passo, o que de mais verosímil é possível oferecer sobre esta jornada histórica e quem foi aquele grande capitão. É graças ao génio criativo de João Morgado e à sua enorme capacidade de recrear ambientes numa linguagem que sabe respeitar o tom da época, sem cair em anacronismos, mas também sem ser pesada e de difícil leitura, que nos permite ficar facilmente inseridos num ambiente que nos leva a pensar estar a percorrer pela primeira vez toda a esfera terrestre como se estivesse lá há quinhentos anos atrás…»
José Manuel Garcia
Historiador In: Prefácio da obra
[1] Fogo de São Telmo é uma descarga eletroluminescente provocada pela ionização do ar num forte campo elétrico provocado pelas descargas elétricas.
Para uma leitura de “Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso” de João Morgado
“Sem os superpoderes dos heróis da Marvel, Magalhães abraçou o mundo”