“Sem os superpoderes dos heróis da Marvel, Magalhães abraçou o mundo”

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João Morgado© Álvaro Isidoro / Global Imagens
Entrevista ao DN - Diário de Notícias - Leonídio Paulo Ferreira "Magalhães era um homem de antes quebrar que torcer"

Fernão de Magalhães, figura histórica de há 500 anos, seria uma personagem credível se saísse da imaginação de um romancista?

A um autor, é-lhe exigido um personagem verosímil. Mas, na verdade, são as personalidades incríveis e que vão além do admissível, que marcam o rumo da humanidade – foi o que aconteceu com Magalhães. O meu desafio foi adequar uma narrativa literária condizente com a dimensão do homem-real, colocando a imaginação ao serviço dos feitos extraordinários que nos proporcionou… Sem efeitos especiais, e sem os superpoderes dos heróis da Marvel, este homem abraçou o mundo: com o braço direito, chegando às ilhas Molucas ao serviço dos portugueses, com o braço esquerdo chegando às atuais Filipinas pela bandeira dos castelhanos. Foi o mentor da mais difícil e longa viagem marítima da História, que lhe permitiu alcançar com êxito o objetivo sonhado por Cristóvão Colombo: chegar à Ásia rumando a ocidente. E, embora esse não fosse o fito inicial, acabou por ser o mentor da primeira viagem de circum-navegação da terra. Ou seja, em pleno séc. XVI já foi global, antes da globalização, superando toda a ficção do seu tempo…

Como se descreve a personalidade de alguém que teve de enfrentar D. Manuel I, cativar Carlos V, submeter vários capitães espanhóis, liderar uma tripulação em horas de descrença?

Tomando um poema de Sá de Miranda – que bem lhe podia ser dirigido – diria que era “homem de um só parecer, dum só rosto, uma só fé, de antes quebrar que torcer.” Com facilidade ganhava amigos nos campos de batalha, onde se destacou como soldado. Era firme nos seus propósitos, tinha uma personalidade forte que o levava a bater de frente com os seus superiores e mesmo com o próprio rei D. Manuel I, a quem não em hesitou pedir um aumento de “moradia” – seu salário de soldado – e a quem ousou mandar uma missiva a solicitar o pagamento de um cavalo morto em combate, o que foi considerado um ultraje na corte. Retomando o poema de Miranda, “ele tudo pode ser, mas de corte, homem não é” – faltava-lhe diplomacia. Contudo, em Castela – talvez por pisar terrenos menos conhecidos – soube moderar os seus ímpetos, rodear-se de gente influente, aceitar conselhos e fazer valer os seus argumentos. Conseguiu em poucos meses, o que Colombo levou sete anos a conseguir, o apoio d”el rei para lhe financiar uma frota… Já durante a viagem, o seu temperamento de “antes quebrar que torcer” retornou. Aos traidores ditou a sua lei. Aos menos crentes e medrosos, impôs a sua vontade, o seu sonho…

A insistência de Magalhães em encontrar a passagem para o Pacífico nasce da convicção científica ou do desespero?

Na verdade, foi um misto… Por um lado, teria informações colhidas em Portugal – mas não confirmadas por si – de mapas que teriam uma passagem assinalada. Uma “cauda de dragão” que rasgava aquelas terras, dizia-se… Por outro lado, estava escorado numa grande convicção pessoal de que, se África tinham um fundo – o Cabo das Tormentas -, também o novo continente teria por certo uma passagem… Acabou mesmo por descobrir esse “estreito” que dá passagem para o oceano Pacífico, e que hoje leva o seu nome, Magalhães. Só homens de uma enorme crença testam os sonhos até aos seus limites…

O que leva alguém corajoso mas cauteloso a ser temerário e morrer numa batalha desnecessária nas Filipinas?

É o episódio que a todos nos deixa perplexos. O que levou um homem experimentado na guerra, a comandar sessenta homens contra mais de dois mil guerreiros da ilha de Mactan, nas atuais Filipinas? Um inconsciente sentimento de superioridade militar…? Talvez não. Algo estaria a perturbar-lhe a lucidez necessária…? Talvez sim. Como a liberdade do romance nos permite entrar numa viagem íntima pelos sentimentos do personagem-Magalhães, apresento a minha própria ideia sobre o assunto… mas, desculpem, terão de ler o livro.

Fernão de Magalhães

Merece Juan Sebastián Elcano reconhecimento por ter sabido retirar aqueles homens do desespero no meio das Filipinas e fazê-los regressar a Espanha pela rota do Cabo, mesmo com o risco de serem apresados por Portugal?

Elcano foi um dos revoltosos a quem Magalhães perdoou a vida. Para além disso, mostrou-se sempre uma figura apagada durante toda a viagem. Mas depois, erguendo a bandeira da sobrevivência, tudo fez para tirar os seus homens daquele fim do mundo, dando-lhes a esperança de voltarem a casa. Sentido que não tinha condições para a viagem de retorno pelos “estreito” descoberto, pois era uma viagem demasiado longa e penosa, esqueceu as ordens do seu rei e lançou-se na aventura de entrar pelo proibido “mar português” adentro – chegando às Índias, descendo o Índico sem tocar terra até ao Cabo das Tormentas, subindo o Atlântico até Cabo Verde e, mais tarde, Espanha, onde chegou com 17 sobreviventes, entre os quais, o famoso Pigafetta. Esta viagem do desespero é que lhes granjeou a fama de terem completado a circum-navegação, algo que não estava nos planos de ninguém… Podemos dizer que foi o homem certo no momento certo, e que o destino lhe sorriu.

Como vê as polémicas sobre quem deve ter os louros da expedição, se o português Magalhães, que a imaginou, ou a Espanha, cujo rei-imperador teve a sabedoria de a financiar?

As polémicas são estéreis e os louros desnecessários. Tivemos o conhecimento dos portugueses, a raça de Magalhães e dos seus, a visão de um jovem rei de 17 anos, Carlos I que acreditou nele e o capacitou para tal façanha… uma frota que levou homens de seis ou sete nações da Europa. Todos devemos festejar esta expedição com orgulho e sem invejas… a grandiosidade desta viagem tem de ser superior à mesquinhez política. Ao chegar à Ásia rumando a ocidente, Fernão de Magalhães provou experimentalmente que a terra era redonda. Foi o primeiro europeu a navegar no mar do sul, a que chamou Oceano Pacífico. Foi o grande responsável por levar a fé católica às Filipinas, a primeira nação cristã no Oriente. Não podemos simplesmente celebrar estes feitos em paz…? Eu apresentei o livro no Planetário de Lisboa ao lado da Embaixadora das Filipinas, temos de celebrar a história sem complexos.

Teve apoio científico do historiador José Manuel Garcia, biógrafo de Magalhães. O que significa isso no livro?
Sou eu sempre que faço as minhas pesquisas. Mas este livro saiu de um desafio pessoal de José Manuel Garcia que conhecia o meu trabalho. Ele é o maior especialista do assunto, o que, sob a sua orientação, me permitiu trabalhar mais rápido e com rede. Por vezes dou o exemplo daqueles exercícios em que temos de unir os pontos até descobrir um desenho. Ele deu-me os pontos numerados – os factos históricos conhecidos – eu alterei-lhes a ordem e fui ligando-os com a minha ficção controlada. Espero que o livro “Fernão Magalhães e a Ave-do-Paraíso” possa mostrar uma visão mais clara desta aventura, pois creio que é o mais verosímil que nos foi possível apresentar. Como disse João Paulo Oliveira e Costa, mais que um romance histórico, procura antes ser uma “recriação histórica”. Espero que aprendam disfrutando da leitura.

OUTRAS ENTREVISTAS: 

Mundo Lusíada, Lusa, Fernão de Magalhães: Navegador teve “a seu cargo a mais difícil e longa” viagem marítima”, 11.09.2019;

Rádio OBSERVADO, João Paulo Sacadura, Gama, Cabral, Magalhães, Camões: a verdade que dói”, 09.09.2019;

 


João Morgado 

Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso

Romance – Esfera dos Livros – 2019

Trilogia dos Navegantes

 


 

«Eu leio e penso: se não foi assim, foi exactamente assim, teve que ser assim. O que está nos diálogos, passe o exagero, é quase de certeza o que terá sido dito… e isso significa que, para um autor, escrever textos e diálogos, e os historiadores dizerem deve ter sido mesmo assim, tem de ter um rigor histórico muito bom.»

João Paulo Oliveira e Costa
Escritor e Romancista.
Planetário, Lisboa, 10.Set.19