Excerto do livro "Fernão Magalhães" - "O rei-não"
Lisboa, Abril de 1516 – Já tinha dado meia-volta ao mundo. Por sua vontade, outra meia daria ele, que para tal feito lhe chegavam os vigores do corpo e o ardor da alma aventureira. A sua espada estava ao serviço de Deus e do reino de Portugal, mas também estava ao seu serviço, da sua bolsa e porvir. Contudo, era um cavaleiro fidalgo que recebia 1250 reis mensais, coisa pouca. Fernão de Magalhães, entendia por bem ser agraciado condignamente pelos seus serviços, que méritos tinha por si, e provas dadas. Queria um aumento de 100 reais[i] mensais na sua moradia[1], o que tinha por justo e moderado, mas o monarca fazia ouvidos de mercador a tal rogo.
“Não”, retorquia D. Manuel I. Uma simples palavra, seca, infecunda, qual adaga a matar vontades. O navegador olhava para o rei de Portugal, para o seu ar atarracado, anafado de carnes e grossas farpelas, e pensava para consigo, “é um fraco”. Não tinha em grande conta um homem que era senhor de um vasto império, que ia do Brasil às Índias, mas só calcava os tapetes dos palácios; não conhecia sequer o cheiro húmido do mar, onde se alçara a suor e lágrimas a glória do reino.
“Não”, repetia ele com arrogância, com os olhos esverdeados, vivos, a reluzir num rosto de sobrancelhas bastas. “Um rude bicho…”insultava-o Magalhães em pensamento. “Um bicho pejado de ouro, mas cego para quem o serviu com suor e sangue”. El-rei recusava reconhecer-lhe os muitos préstimos, e aumentar-lhe a tença para um valor tido por digno. Ele não era um qualquer homem de armas. Era de nobre sangue. Nascera no Porto, em 1480. Na sua juventude fora pajem da rainha D. Leonor até passar a ser fidalgo da casa real. Partira na companhia de seu irmão Diogo de Sousa para o Oriente em 1505, com 25 anos, sob o comando de D. Francisco de Almeida, que fora o primeiro vice-rei do Estado da Índia. Por ali servira oito anos, de porto em porto, de conquista em conquista, na África Oriental e nos muitos portos e terras das Índias. Tantas pelejas como cicatrizes, umas na carne outras na alma, que os campos de sangue são infernos, mesmo para os vitoriosos. E nem sempre os lugares do demo se mostravam em chamas, que quase perdera a alma num naufrágio ao largo das Maldivas. Ele embarcou em 1509 na primeira armada portuguesa para Malaca[ii], a grande cidade que controlava o comércio das especiarias mais longínquas. Em 1511, ele voltou a essa cidade para avassalar aquelas terras sob a ordem do grande Afonso de Albuquerque, tendo seguido depois com António de Abreu, na descoberta da rota até às ilhas de Maluco[2], nos confins do mundo por explorar. Tinha então dado meia-volta ao mundo, uma façanha só ao alcance de poucos e arrojados aventureiros e guerreiros.
Regressado a Lisboa[iii], levara ainda a sua espada até ao Norte de África, para pelejar os mouros em Azamor[iv], onde quase perdera a vida. Assim sendo, cruzara meio mundo, dando o corpo às intempéries no mar, à danação dos homens de muitos terras, às doenças e a todo o tipo de martírios, honrando sempre as armas d’el-rei. E de que servira tanto denodo e sacrifício? Via agora que, para aquele homem, tudo era nada.
“Não”, repetia ele, negando-lhe o aumento da remuneração dos seus serviços, colocando sobre a mesa os dedos gordos e cheios de anéis com pedraria fina. A Magalhães repugnava-lhe o fulgir da opulência real, quando ele tinha amadurecido a combater e permanecia sem títulos nem cabedal para viver um resto de vida desafogada. Estava com quase quarenta anos e ainda não casado nem tinha filhos. Mas de tanta entrega e dedicação em nome de Deus e de Portugal, nada lhes restara, nem fortuna nem glória. Tinha um pequeno espólio do saque que lhe coubera na conquista de Malaca, coisa pouca, um escravo malaio, que atendia pelo nome cristão de Henrique e ainda algum dinheiro de negócios que havia feito.
“Não” respondia veemente el-rei aos seus pedidos, com os ouvidos prenhos pelos maldizentes da corte, que lhe relembravam a toda a hora, que ele tinha retornado ao reino sem permissão do capitão de Azamor. Tal facto, tinha deitado sombra no seu nome, sabia disso. Mas que fazia ele tão malparado, longe de casa e dos seus, a arriscar a vida por sobras? Não era um evadido, tinha terminado a sua missão, naquele mundo malcheiroso.
Quando estivera no Oriente via que já lá não podia ficar a consumir-se, meses e meses à espera de alguma benevolência enquanto via encherem-se as bolsas de funcionários do reino, gentinha sem escrúpulos, corruptos como o pior dos Judas. Se perdesse aquele barco em 1513 teria de esperar pela moção seguinte, o que significaria mais meses de espera. Tinha que largar Malaca e a Índia, era premente, pois ali não via grande porvir. Tinha ganho umas moedas, é verdade. E onde lhe podia chegar a ambição? Granjear umas tantas moedas mais? Podia comprar umas sacas de pimenta, mas para vender onde, se não lhe era assentido afastar-se daqueles lugares? Podia comprar umas pipas de vinho, uns fumos da cor do açafrão, ou os prazeres de uma perfumada meretriz de lupanar, mas teria a vanglória dos sentidos por uma noite. E isso que ajuntava à sua vida? E quando lhe minguasse a robustez para empunhar uma espada, viveria das parcas esmolas reais, dos favores dos outros? Atulhou a arca dos pertences, documentos, moedas de ouro, umas tantas vestes, o pouco que tinha. Ajuntou uma saca de pimenta e escapuliu-se no enfuscado da noite para dentro da nau Santa Cruz que levantava âncoras pela alvorada, embrulhada ainda pelo nevoeiro. A saca de especiarias pagou a torna viagem e um camarote partilhado com mais três nobres fedorentos, mais depauperados que ele. Ali tudo tinham perdido, até os sonhos. Seguindo cada um com os seus pensares, mal trocaram palavras durante toda a viagem. A vergonha é calada por natureza.
Em Cochim, Magalhães entregara em 1510 os seus dinheiros a um mercador afamado, Abraldez de seu nome. A sociedade demorou pouco. O homem finou-se e com ele o negócio e os valores empenhados. Só mais tarde lhe pagaram a maior parte da dívida. Ficou com o escravo malaio que se recusou vender, Henrique, e um cavalo que ninguém queria. Estava de bolsa quase vazia, mais que nunca precisava da previdência da coroa portuguesa. Propôs-se capitanear uma nau para as ilhas de Maluco ao serviço d’el-rei, já que tinha experiência daqueles mares e estudado a sua cartografia. Exibiu aos olhos da corte uma missiva enviada em 1514 pelo seu amigo e companheiro de aventuras, Francisco Serrão, que vivia por lá e bem conhecia aquelas gentes …
“Não”, responde D. Manuel I, embora entendesse por bem dar tal honra a D. Tristão de Meneses[3]. Nem aumento de moedas nem permisso de viagem. “Não”, responde ele aos seus rogos, uma e outra vez, enquanto vai deambulando pelo salão do Palácio da Ribeira. Tem pernas meãs, grossas, e braços compridos – com os dedos das mãos a descerem abaixo dos joelhos. Afigura-se-lhe patético, mas é o seu rei, um dos soberanos mais poderosos do mundo conhecido. Está irredutível. Atira-lhe à cara que andou por Azamor[4], em Marrocos, a mercar com mouros às ocultas. Sabe que não são palavras dele, são dizeres que os malquerentes do reino lhe colocam na boca, venenosos como a naja[5] indiana. O que lhe deviam ter dito em seu abono, é que andou a guerrear os infiéis do traidor Muley Zião, que recusara pagar os tributos devidos e expulsara os portugueses daquela praça. Teve de ser tomada à força. Tinham sido pelejas encarniçadas. Ele era prova disso, pois teve uma lança de arremesso a matar-lhe o cavalo. Pegou na pena, no tinteiro, lavrou uma carta a Sua Majestade a rogar uma reparação justa pelo valor do animal[v], o que foi considerado um ultraje na corte. Mais um. Tinha ele parcas palavras na boca, mas era escabreado nas ações. Estava pobre de siso e de bolsa. As pagas do reino eram falhas, pelo que estava mais indigente do que quando se arrolara para o norte de África. Fez então amizade com um árabe dos desertos que lhe mostrou como a fortaleza tinha mil entradas e saídas, com possibilidades de trazer e levar mercadorias e assim ganhar algum cabedal – precisava de comprar um novo cavalo com pressa.
Mas certo dia, depois de uma contenda com berberes, uma lança rasga-lhe as carnes da perna. Não foi ferida tamanha para lhe dar morte, mas ficou por lá, atirado para uma enxerga infestado de piolhos e percevejos, enxameado de mosquitos, sem físico que lhe acorresse com uma palavra de conforto, uma tisana, uma pomada de ervas, nada. Como tantos outros, ficou a sós com as dores, a escorrer em sangue, o que atraia montes de bicheza danada, grande e pequena. Se adormecia, comiam-no vivo. Lutou com as ratazanas do deserto, com o mesmo denodo com que lutou contra as catervas de berberes armados. Uma batalha de muitos dias e muitas noites. Só o dedicado Henrique permanecera a seu lado, espantando a bicharada esfaimada, cuidando-lhe da ferida com vinagre de vinho e sal, para não gangrenar. Assentava-lhe uma pomada feita de óleo de catos, sumo de tâmaras e gordura de camelo. Nada parecia resultar. Mas se um mouro o feriu, outro mouro o salvou. Cuidador dos camelos, um tuaregue escuro de feições, mas alumiado por um permanente sorriso, trouxe-lhe pó de alumbre. Ardeu-lhe na ferida como fogo, gritou como um danado, mas sarou. Ficou-lhe agradecido. Quando conseguiu firmar a perna e dar uns passos, zarpou dali – não queria mais guerrear aquela gente que tinha por boa. Não lhes queria nem as terras nem o deus. Que ficassem na paz de Alá. Chegou a Lisboa, a mancar e em desespero de vida que a bolsa estava parca de moedas. Precisava que o monarca lhe desse um reforço de moradia que era de apenas mil duzentos e cinquenta reais[vi]. Precisava mais. Precisava.
“Não”, atestou o rei uma vez mais, apesar dos sacrifícios pessoais apresentados e das mazelas físicas do seu arcaboiço de militar. Tal nega era agora justificada com os relatórios que chegavam, dando conta dos seus negócios esconsos nos desertos, de ter voltado sem permissão do capitão da praça, e de numa cavalgada pelos desertos de Marrocos, com outros portugueses, ter tomado para si cabeças de gado bovino e escravos, vendidos aos mouros do povoado vizinho de Enxouvia. Sempre palavras negras a persegui-lo. Perante tanto murmúrio a enxamear a corte à boca pequena, D. Manuel I mandou-o de volta a Azamor[vii] para limpar o nome. Retornou a Marrocos. Mas, ou porque era limpo de culpa, ou por falta de provas, a verdade é que ninguém lhe apontou acusação e retornou livre ao reino. Apesar de tudo, el-rei guardou-lhe especial aversão, tomando-o por cobiçoso e interesseiro, o que não era uma nobre condição.
“Não”, repetia agastado com a insistência. Não haveria aumento de tença, nem qualquer reparo pela morte do cavalo. Não haveria qualquer recompensa pelo aleijão da perna, já que muitos afirmavam ser o manquejar fingido no fito de obter proventos reais. Uma injustiça, pensava Magalhães. Estava desalentado. Sentia que este era um soberano que desdenhava dos seus mais bravos. Depois de ter achado as terras de Vera Cruz, no novo mundo, e de ter ido às Índias, Pedro Álvares Cabral estava arredado em Santarém, afastado da corte, desvenerado e sem novas missões. O grande Afonso de Albuquerque morrera no mar, desgostoso, depois deste rei, envenenado pela peçonha dos seus serviçais de punhos de renda, ter ficado enciumado do seu poder, e lhe ter retirado o cargo de governador das Índias. Assim sendo, se tão grandes cavaleiros não mereciam a admiração real, que graças podia ele almejar para si? Nenhumas. El-rei estava alucinado com as riquezas das Índias e a construção do grande Mosteiro de Santa Maria de Belém[6]. Uma obra assombrosa que a todos causava espanto pela grandeza, pela arte. Um monumento que falaria por ele durante séculos e séculos. Que faria dele um rei eterno. Era essa a sua primazia. Tudo o mais era perecível. Para ele, os fidalgos guerreiros, gente de batalha e de conquista, eram só mais umas tantas pedras sobre as quais erguia o seu legado glorioso e triunfal. Gente insignificante, mão-de-obra findável.
Um dia olhou o rei bem de frente, o seu cabelo castanho e encaracolado, que lhe pendia pelos ombros, com uma curta franja sobre a testa. Achou-o feio por dentro e por fora e naquele momento perdeu-lhe o respeito. Perguntou a si mesmo, se devia vassalagem a tal homem. E respondeu: “Não”.
Fernão de Magalhães foi primeiro homem assumir a forma global do nosso planeta e a circundá-lo, primeiro pelo oriente e depois pelo ocidente. Provou experimentalmente que a terra era redonda – apesar da noção teórica da sua esfericidade já existir desde os tempos antigos e revelou, pela primeira vez, a dimensão aproximada do planeta. Ao seu cargo, teve a organização e comando da mais difícil e longa viagem marítima da História – que acabou por ser a primeira viagem de circum-navegação do globo -, e que lhe permitiu alcançar com êxito o objetivo sonhado por Cristóvão Colombo: chegar à Ásia rumando a ocidente. Concluiu assim, no essencial, o grande ciclo dos Descobrimentos marítimos, iniciado um século antes, em Portugal.
Foi o primeiro europeu a navegar no mar do sul, a que chamou Oceano Pacífico. Foi o grande responsável por levar a fé católica às Filipinas, a primeira nação cristã no Oriente. Polémico e arrojado, Magalhães é uma figura fundamental na história do Ocidente.
Para a sua grande aventura, partiu de Sevilha em Setembro de 1519, faz agora 500 anos.
Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso
Romance – Esfera dos Livros – 2019
«Respeita o que se sabe sobre Fernão Magalhães, com a cor que o texto mais objectivo dos historiadores não consegue. Tem explicações que a maior parte dos livros de história não têm. Por exemplo a explicação da sua saída de Portugal.»
João Paulo Oliveira e Costa
Escritor e Romancista.
Planetário, Lisboa, 10.Set.19
[1] A moradia era uma espécie de ordenado – ou tença – paga em dinheiro e cevada a fidalgos da casa real que estivessem ao serviço do rei.
[2] Com a chegada às Molucas, Fernão de Magalhães concretizou presencialmente a primeira parte da sua circum-navegação da Terra. A atual denominação portuguesa dada para se referir às ilhas indonésias das Molucas resulta de uma influência de origem holandesa e inglesa, pois nos séculos XVI e XVII os portugueses referiam-se-lhes como sendo as “ilhas de Maluco”, a qual está mais próximo da denominação original Maluko dada a este arquipélago ainda se mantem, a qual poderá derivar do árabe Jazirat al-Muluk, “ilha dos reis”. Na época, a designação de Maluco também compreendia uma aceção mais específica como referência às ilhas das Molucas do norte, denominadas Ternate, Tidore, Makian, Motir e Bacan, por ser nelas que se produzia o cravinho.
[3] Zarpou de Lisboa a 9 de abril de 1517.
[4] A 17 de agosto de 1513 partiu de Lisboa para a conquista de Azamor.
[5] Cobra-capelo
[6] Mosteiro dos Jerónimos.
[i] O valor do aumento pedido e foi recusado em 1516 ou 1517, foi alvo de diferentes referências, mas é seguro que foi de 100 reais, pois é esse o valor registado na carta de Sebastião Álvares de 18 de Julho de 1519, personalidade que então a revelou ao próprio Fernão de Magalhães, sem que este a tivesse contestado.
[ii] Atualmente, Malaca é o terceiro menor estado da Malásia mas chegou a ser um dos mais antigos e importantes sultanatos malaios. Atualmente o estado é dirigido por um governador. Em 2008, a cidade de Malaca foi declarada Património Mundial pela UNESCO.
[iii] Fernão de Magalhães deixou Malaca no navio Santa Cruz, que partiu desta cidade a 11 de janeiro de 1513 e chegou a Cochim a 10 de fevereiro do mesmo ano, juntamente com mais duas naus, tendo depois partido naquele navio rumo a Lisboa, onde atracou nesse ano de 1513.
[iv] Fernão de Magalhães esteve dez meses em Azamor, tendo as suas actuações nessa cidade e os problemas que por essa causa passou sido relatados por João de Barros. É ainda de assinalar que presença de Fernão de Magalhães e do seu irmão Duarte de Sousa entre os cavaleiros comandados pelo capitão Aires Teles está atestada no rol do pagamento que se fez à gente de cavalo que serviu na cidade de Azamor no ano de 1514.
[v] “Senhor Fernão de Magalhães faço saber a vossa alteza como o dia que o duque chegou sobre Azamor em uma escaramuça que lá houve me mataram um cavalo às lançadas, do qual me não deram em Azamor mais de três mil e setecentos reais, de treze que me custou e os juradores disseram; e porque vossa alteza já tem mandado pagar alguns deles lhe beijarei as mãos me mandar pagar o meu, pois mo mataram por vosso serviço e em lugar honrado e com grande perigo de minha pessoa, onde a pé me salvei, e nisto senhor me faz vossa alteza mercê”, petição datada de 29 de Março de 1514.
[vi] Ao avaliarmos as quantias recebidas por Fernão de Magalhães, verificamos que em 1505, quando foi para a Índia, a moradia tinha o valor de mil reais mensais, além de cevada. Mais tarde, essa moradia foi aumentada, pois a 15 de abril de 1516 ascendia a “1 250 per mês, com alqueire de cevada por dia dos derradeiros 6 meses do ano passado de [15]15 e dos primeiros 3 deste que serviu em Azamor etc., em Santarém a 15 de abril de 1516.”