O que leva a Inquisição a salvar "Os Lusíadas"? - In: O Livro do Império
“Verifico, com agradável surpresa, que as vossas últimas estrofes são um delatar da mediocridade que grassa no reino, por oposição à grandiosidade que a obra canta dos nossos egrégios avós… Não o direi à frente de outros, mas aqui, à puridade vos digo, que partilho a vossa visão, o vosso olhar crítico e reprovador.”
Sereno, o Cardeal aproxima-se do vate pela primeira vez, e num tom baixo, vai dizendo:
“Vou mais longe. Tenho para mim que não existe a Pátria épica que cantais. Este é um reino de linhagens e parentelas, cada qual vive para si, para os seus. Tirando meia dúzia de famílias, para o resto da nossa gentalha a lealdade mede o que vai dos beiços ao fundo das suas bolsas. Auro loquente, nihil pollet quaevis oratio. Ou seja, são fiéis a quem lhes mete 30 dinheiros nos alforges e pitança farta na mesa. Por isso são em tão grande soma os que já se venderam a Espanha. A cor da bandeira não lhes dá pendor desde que tenham assegurado os seus privilégios”, confessou D. Henrique, de forma agastada, rodando nervoso o anel cardinalício na mão direita.
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“Deus que vos marcou, algo em vós achou. Fiat voluntas Dei – que seja feita a Sua vontade. Farei aprovar as vossas Lusíadas – está decidido!”
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“As palavras nação e estado não significam nada para esta nobiliária escumalha. Sebastião é soberano de várias nações, de várias pátrias. E nem todas estão com ele – vai descobrir isso da forma mais triste… É verdade que as vossas Lusíadas falam de uma Pátria una e indivisível que não existe, mas acredito que pode ainda ser gerada, com a graça de Deus!”, exclamou batendo com o punho na sua mão e erguendo o olhar ao alto como que numa prece.
“Como uma memória viva, o vosso Poema pode unir-nos em torno de um passado comum, de um sentimento forte. Carecemos daquela portuguesa alta excelência, de lealdade firme e obediência , de que vós falais. Talvez seja esse o mote que falta para a união de um povo, para enfrentar os tempos temerários que se aproximam… há valores morais e políticos neste vosso canto. Há muitas famílias nobres descontentes. Gente que está do meu lado, contra as infantilidades do rei e o despotismo dos Câmaras. Até a própria rainha Catarina se volveu já contra eles, finalmente. Agora que a aura do império desfalece, talvez este canto de exaltação aos nossos valores pátrios, seja o que precisamos para unir as pessoas e mudar o sentido do reino.”
O Cardeal rodou sobre si mesmo e regressou ao cadeirão. Sentou-se. Colocou os cotovelos nos descansos almofadados do cadeirão e assentou o queixo nos dedos entrelaçados.
“Passei a noite em branco, rezando, pedindo luz divina para este meu julgar. Entendo que D. Manoel de Portugal, nosso dilecto amigo, está cheio de razão. As vossas Lusíadas são uma epopeia majestosa, mas são igualmente um poema político. São uma ode contra a devassidão, sem dúvida. Mas são também um libelo por Portugal e contra a Hispânia, contra a junção de todos os reinos da península, pretendida por Filipe II e pelos jesuítas, esses apóstolos do diabo, que são os seus peões de brega. Que Deus me perdoe por tais dizeres…”
O Cardeal persignou-se, fechou os olhos e rezou. Depois beijou a Cruz que trazia ao peito. Virando-se para o poeta, exclamou:
“Deus que vos marcou, algo em vós achou. Fiat voluntas Dei – que seja feita a Sua vontade. Camões, sinto que os últimos dois cantos do poema perderam o fulgor épico do resto da obra, talvez por vossa débil condição, ou porque a raiva e a peçonha dos dias presentes vos abocou o espírito. Ainda assim, são certeiros no seu falar e deitam sal nas feridas que se abriram em Portugal. Contra tudo e contra todos… farei aprovar as vossas Lusíadas – está decidido!”
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“Não podemos deixar de salientar que, entre os recentes cultores do romance histórico, João Morgado, com três livros publicados sobre a temática geral dos Descobrimentos, tem uma vocação muito saliente para este género literário. Nos seus livros detectam-se uma imensa investigação, cumulando uma sólida informação…”
Miguel Real, Escritor e Crítico In: Jornal de Letras, 19.DEZ.18
A ARTE NA ESCRITA DE JOÃO MORGADO – “O Livro do Império”: História e Literariedade”