O Coração de mãe: bate o teu, bate o meu…

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Henri-François Riesener (1767–1828)- Portrait of a Mother with her Daughter (Detail)
A cumplicidade do sangue... In: Diário dos Imperfeitos ___

 

«… Nenhuma mãe dorme embalada pelo choro angustiante de uma filha. Foi a meio da noite acender o candeeiro da Maria e colocar-lhe uma bandeja na mesinha junto à cama: pão de mistura, marmelada, compota de figos, queijo fresco, um chá de camomila bem quente; ainda se viam as ervas escuras no fundo do bule, as ervas e um comprimido para dormir, bem dissolvido, pois ninguém precisava de saber, muito menos ela.

«É tarde e não comeste nada. Precisas de aconchegar o estômago…».

As mães apagam-se na sombra dos filhos mas são as eternas vigilantes da ternura, portadoras de um abraço imenso.

«O teu coração foi feito do meu, bate o teu, bate o meu, bate o teu, bate o meu…», disse ela na mais pura das frases.

A filha quase ouviu o bater dos corações nas suas palavras, «bate o teu, bate o meu…», os dois ao mesmo tempo, «bate o teu, bate o meu, bate o teu, bate o meu…», esboçou um sorriso triste e sentou-se na cama. «Bebe enquanto está quente…», disse a mãe, colocando-lhe uma toalha no peito. Cortou-lhe depois o pão, uma fatia de queijo, outra de marmelada.

«Vais precisar de comer muito… para alimentares o filho que te vai nascer!».

Trespassada pelas palavras, atordoada de espanto, Maria sentiu-se desfalecer naquele momento. Estremeceu; um arrepio submergiu na pele até às entranhas e sentiu-se rasgada, ferida, aberta, exposta. Chovia lá fora na rua como lhe chovia no rosto, desmesuradamente; uma tempestade súbita. O seu tronco balançava com o soluçar que lhe ia no peito, mas os braços permaneciam quietos, desarticulados, gestos quebrados como numa imperfeita marioneta de pano, sem coração ou alma.

«Bebe, filha, o chá vai fazer-te bem!…», incentivou Dorinda com maior das tranquilidades, levando-lhe a chávena aos lábios brancos – e o comprimido, aguado, invisível.

«Não perdi o meu amor por ti… nem vais ser expulsa do Paraíso, simplesmente, porque não vivemos no Paraíso. Por isso sossega… não tenhas medo. Teu pai não sabe nem desconfia, mas eu vou cuidar de ti».

Maria não falava. Por entre soluços e lágrimas, sorvia o chá que a mãe lhe dava à boca, e só bem mais tarde conseguiu comer um pouco de pão com marmelada. Soerguida na cama, Laura tinha permanecido quase imperceptível no outro lado quarto, mas doía-lhe a escuridão silenciosa que a cingia, doía-lhe a dúvida:

«Como é que a mãe sabe que, a Maria está…?». Sentiu-se incapaz de pronunciar a palavra.

«… grávida?», exclamou Dorinda, concluindo-lhe a pergunta. «Diz… não tenhas medo! Ela não vai poder engolir a barriga, como tu engoles as palavras!».

Maria retomou as lágrimas e bolçou o chá pela boca, sobre a toalha que tinha ao peito. Engasgou-se, tossiu, chorou, gritou como que a despir a alma, a libertar o medo que a assaltava; mais que medo, horror. Dorinda arredou a comida, limpou-lhe a cara, retirou-lhe o pano sujo e abraçou-a para lhe acalmar o pranto.

«O teu coração foi feito do meu, bate o teu, bate o meu, bate o teu, bate o meu…».

Assim permaneceram, abraçadas as duas, coração com coração, a romper o nevoeiro frio que lhes ia no corpo. Por fim, o choro deu lugar a um olhar suspenso e a Maria adormeceu. «…bendito seja o fruto do teu ventre», rezou Dorinda…»

 

 

 

João Morgado IN: Diário dos Imperfeitos

Romance, 2017, Casa das Letras (LEYA)

Prémio Literário Virgílio Ferreira 2012

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