o “24 de Abril” numa aldeia a preto e branco

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Uma criança em vésperas da liberdade... IN: O Pássaro dos Segredos ___

 

«Recordo que a minha casa era a preto e branco, não que por ali habitasse alguma tristeza especial, mas simplesmente porque era assim toda a rua onde vivia, a minha aldeia, o meu país. Havia um xaile de viúva que cobria as nossas vidas. Parecíamos um povo velho a pentear os cabelos brancos com os dedos por debaixo do negro lenço de merino. Era um tempo de silêncios e ouvidos suspeitos, coisas do regime, diziam-me.

“Aldeia do Carvalho” (Covilhã)

Eu desconhecia o que era isso. Mas, talvez por achar que as minhas asas cresciam, meu pai falava-me em surdina do que se passava nas fábricas, do que diziam as pessoas – falava-me de reuniões às escondidas, de jornais e folhetos que liam por entre os fardos de lã. Falava como se eu fosse já um pássaro adulto, falava como se precisasse de falar, de contar os seus segredos, de exorcizar os seus temores. As suas palavras eram cada vez mais escuras como a noite e desatavam uma ramela triste na voz.

Não entendia aquelas histórias de gente real, onde não havia nem cavalos nem leões. Mas, apesar de pressentir uma sombra negra nas histórias de meu pai, eu acabava por adormecer na mesma.

(…) Numa daquelas noites negras em que toda a luz se escapulia e só restava o abraço de meu pai, ele contou mais um dos seus segredos.

Isto não se diz a ninguém, a ninguém… se alguém sabe posso ir preso”.

E eu dizia que sim, que podia confiar, que da minha boca nada se ouviria. E ele contava o seu dia, as suas raivas, os seus problemas, e depois ouvia os meus – como se fossemos dois amigos a trocar cromos dos jogadores da bola. E a cada noite que passava, a nossa caderneta ficava mais e mais completa, porque nos conhecíamos melhor. E depois meu pai brincava:

Houve um tempo, em que o Bocage se escondia na Estátua de D. José, no Terreiro do Paço, em Lisboa… e sempre que Marcelo Caetano passava de carro, ele gritava-lhe: Ó Marcelo, traz-me um cavalo novo que este já está velho!”

Eu ria-me no escuro, sem saber bem quem era o Marcelo. Meu pai dizia-me só que era o homem que mandava no país. E eu achava graça que o Bocage gritasse assim a um homem tão poderoso – pois, imaginava eu, devia ser até bem mais importante que a minha professora, que mandava nos meninos todos.

“24 de Abril” – ilustração de João Morgado

Já chateado, o Marcelo di­­­sse um dia ao Américo Tomaz: – tens que vir comigo ao Terreiro do Paço. És capaz de não acreditar, mas a estátua do D. José grita comigo…!”

Também não sabia quem era o Tomaz, mas pelos vistos, era um senhor de idade que também mandava no país. E segundo rezava a história de meu pai, um dia meteram-se no carro e lá foram juntos até ao Terreiro do Paço, que era uma praça larga, em Lisboa, junto ao Tejo. “O Bocage, escondido na estátua, quando os viu chegar aos dois, olhando para o Américo Tomaz logo gritou:

“Ó Marcelo, então pedi-te um cavalo novo e tu… trouxeste-me um burro velho?

Meu pai ria no escuro daquele quarto de uma casa a preto e branco. Como a rua. Como a aldeia. Como o país. E depois dizia logo muito sério: “Não podes contar isto a ninguém, nem mesmo lá na escola, percebes? Eu dizia que sim, que percebia, mas na verdade, não percebia porque alguém haveria de prender meu pai por contar uma história que só dava que rir… até entrava o Bocage das anedotas, o homem já nem era vivo, toda a gente sabia que era uma brincadeira – até eu sabia isso e não passava de um pássaro pequeno. Mas, explicava-me meu pai, que aquele era um tempo de silêncios e ouvidos suspeitos. Coisas do regime, dizia-me ele. Eu desconhecia o que era isso, mas sabia que não queria o meu pai numa prisão fria, sei lá onde, longe de mim. Depois quem me abraçava? Quem adormecia o mundo e tudo em redor? Quem comia o pão quente que o Amílcar nos trazia à janela pela madrugada? Por isso não contava nada a ninguém, nem à minha mãe, pois meu pai dizia que as “paredes tinham ouvidos” naquele mundo a preto e branco em que havia um xaile de viúva que cobria as nossas vidas…»

João Morgado 

In: O Pássaro dos Segredos

Ed: Kreamus

Crítica ao livro: Um Blog entre Bibliotecas »»»

Compra de exemplares autografados: kreamus@gmail.com 

 


 

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O país negro não é uma figura de estilo. Sentimos o muro de silêncio e de pedra, sentimos os muros de separação. O “Pássaro dos Segredos” revelou-me mais um grande escritor. Enriqueci o meu conhecimento. O 25 de Abril ficou mais belo, o sol nascerá mais vezes radioso e lindo. O universo dos nossos sonhos de um mundo melhor não adormecerá.

Manuel B. Martins Guerreiro

participou na preparação do 25 de Abril de 1974, integrou os vários órgãos do MFA, foi membro Conselho de Revolução

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