Os devaneios de Camões lamentando o curso da sua vida... e a esperança de seus amigos em salvar 'Os Lusíadas' || O Livro do Império _____
“…Camões estava estirado no leito de roupas perfumadas em casa de Manoel de Portugal. Seria um regalo, não fora o corpo magoado. Os bandalhos não tinham sido meigos. “Animais”, clamava ele, sempre que se mexia e o corpo lhe dava sinal de dor. O olho ficara maltratado, via tudo embaciado. O sobrolho estava ainda inchado e de um roxo encarvoado. Mas era a alma de guerreiro que se apresentava mais negra. “Perdurei a mil contendas contra a mourama, para tombar no chão de uma taverna às mãos de três porqueiros…”
Jau encolhia os ombros, mudava-lhe os panos húmidos da testa e levava-lhe águas aos lábios. De tempos-a-tempos, os febrões causavam-lhe devaneios e declamava versos:
Doces lembranças da passada glória,
que me tirou Fortuna roubadora,
deixai-me repousar em paz u’a hora,
que comigo ganhais pouca vitória.
Impressa tenho n’alma larga história
deste passado bem que nunca fora;
ou fora, e não passara; mas já agora
em mim não pode haver mais que a memória.
Diogo do Couto que viera saber dele, mal a notícia do apaleamento lhe chegara, estava sentado ao fundo da cama, escutando-o, retorcendo o bigode com a ponta dos dedos. Não sabia ele se Luiz Vaz recitava versos passados, ou se os estava compondo naquele mesmo instante, no meio dos febrões que lhe abocanhavam o corpo. “Doces lembranças da passada glória, que me tirou Fortuna roubadora, deixai-me repousar em paz u’a hora…” eram tão actuais os versos que, acreditou o fidalgo, os compunha o poeta ali mesmo, em delírio. Resolveu por isso anotá-los no seu Cancioneiro pessoal.
Vivo em lembranças, mouro de esquecido,
de quem sempre devera ser lembrado,
se lhe lembrara estado tão contente.
Oh! Quem tornar pudera a ser nascido!
Soubera-me lograr do bem passado,
se conhecer soubera o mal presente.
Percebia Couto o desânimo do amigo, os remorsos das suas leviandades, o pesaroso arrependimento. “Oh! Quem tornar pudera a ser nascido!” Soubera dos males que lhe esperavam, e melhor saberia ele aproveitar os bens que a vida lhe oferecia. Camões em êxtase poético e Couto grafando-lhe as palavras, assim os encontrou D. Manoel quando regressou a casa, esfalfado das cavalgadas e esganado de fome. Deu as boas-novas ao seu amigo, mas este manteve-se no leito sem grande reação, meio desacordado, prostrado no seu desalento e dor. “Cousas impossíveis, é melhor esquecê-las que desejá-las…”, retorquiu, talvez resistindo interiormente a mais uma ilusão. Ao que o fidalgo retorquiu. “Pegando nas vossas palavras vos direi também, é fraqueza desistir-se da cousa começada.”[1] Mas o poeta nada mais disse. Adormeceu, ou isso fingiu para justificar a continuação do seu silêncio.
D. Manoel convidou os amigos para a sua mesa. Os serviçais serviram um caldo de aves com acelgas, um pouco de carneiro assado, pão, queijo e vinho. Jau comeu e voltou ligeiro para os pés da cama, velando o amigo. Quando os serviçais se retiraram, puderam os fidalgos falar à larga, sem medir palavras.
O anfitrião mostrava uma esperança renascida após a conversa com o Cardeal D. Henrique. “Trouxe eu da sua própria lavra uma missiva para Frei Bertholameu, solicitando-lhe as Lusíadas. O homem ficou impávido. Não alcancei se aliviado, se raivoso por dentro, sem disso dar mostras, mas lá me deu o original do Poema, com os seus muitos apontamentos e riscos. Quatro cavaleiros da confiança do nosso amigo Távora seguem já com ele para Alcobaça”.
Diogo bateu palmas e abriu um sorriso. “Sois mui arguto D. Manoel. Tendes a minha sincera admiração. Daríeis um excelente estratega militar… mesmo, um general”, gritava ele, exultando com a notícia, quando tudo parecia estar perdido…”
[1] Os Lusíadas, Canto I, 40
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“Após séculos de mal-entendidos, «O Livro do Império» vem, por fim, reconciliar um Camões humanizado com o público leitor”, numa obra que “pela sua argúcia analítica, pela cultura da época, riqueza da linguagem e ritmo narrativo, consagra João Morgado como um escritor de referência no romance histórico e na literatura portuguesa.”
F. Delfim dos Santos
historiador e professor universitário. Apresentação da Obra, FNAC Chiado, 17.DEZ.18