O rosto humano de Camões IN: "O Livro do Império" ___
“…Quando o viu entrar, deu o Inquisidor-Mor mostras de espanto. Contava com um robusto poeta-soldado, já que que tinha ele fama de ser um trinca-fortes, um brigão de rua, a saltar de balcão em balcão, cantando loas às mulheres mais louçãs do reino. Tinha-o como vagante, mas com porte de fidalgo. E em face da obra que escrevera, esperava dele uma entrada triunfante, quase com louros sobre a cabeça, alardeando o seu génio, cofiando as barbas majestosas. Odiava-o sem o ter visto, só pela ideia que tinha dele. Porém, o despojo humano que tinha à sua frente em nada se moldava ao quadro mental que dele fizera.
Era um ser escanzelado, de cabeleira e barba embranquecida, só uns poucos fios de cabelo recordavam o barbirruivo de outrora. Tinha o rosto magro e encovado.
Apresentava-se cego de um olho, que levava coberto por uma pala, e encegueirado do outro – de tão maltratado e negro que se apresentava, mais parecia trazer uma outra pala. Corpo encolhido sobre a velha muleta de madeira, com a perna estropiada, as mãos trementes, os dedos sujos de tinta, o olhar caído no chão.
Então, era este o príncipe do amor que as mulheres encantava? – perguntava-se o Cardeal. Era este o homem que tantos temiam? o homem que tantos idolatravam? Algo lhe escapava ao seu entendimento. Passou longos minutos olhando-o, remirando-o, tentando perceber quem era aquele ser que estava perante si, meio amedrontado, alquebrado de forças, dobrado sobre si mesmo como um vencido da vida. Onde estava o fulgor da sua rebeldia, a centelha do seu génio?
Falara com toda a gente, menos com ele. Por isso resolvera recebê-lo a sós, para lhe saber da figura, da voz, mas sobretudo do espírito. Agora, olhando-o, sentia-se perdido, sem saber bem o que pensar.
Apiedando-se do seu estado lastimável, apontou um cadeirão e exclamou na sua voz branda: “Vejo que estais enfermo. Podeis assentar-vos…” O vate ergueu a fronte sombria e de voz grossa respondeu. “Agradeço, Eminência, mas a Vossa Graça não lhe dê cuidados esta minha triste figura, que a peçonha não faz mal a quem nela foi criado. Só a dor da vida me magoa e essa trago-a no peito escondida. Sabe Deus que posso suportá-la de pé, que sentado me dói de igual modo!”
O Cardeal abriu muito os olhos. Tinha bastado aquela meia-dúzia de palavras para mudar o seu pensar sobre aquele homem. “Ex ungue leonem.” Pela unha se reconhece um leão, pensou. Percebeu logo que uma alma viva – ainda que atormentada -, lhe forjava a índole forte que o afamava…”
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“Nos seus livros detectam-se uma imensa investigação, cumulando uma sólida informação (…) e sobretudo uma fortíssima imaginação histórica que lhe permite, enquanto autor e narrador, relacionar situações e personagens reais segundo uma direcção inesperada e original.”
Miguel Real
Escritor e Crítico In: Jornal de Letras, 19.DEZ.18
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