Intervenção de João Morgado no Colóquio: Ferreira de Castro “A Lã e a Neve”, Universidade da Beira Interior (Covilhã), 18 de Outubro
“Perguntaram a José Luís Borges:
– Para que serve a poesia?
Respondeu:
– para que serve o pôr-do-sol?
Perguntar para que serve a literatura, para que serve um livro, parece uma pergunta burlesca, mas a verdade é que esta pergunta tem atravessado os tempos. Nas décadas de 30 e 40, os intelectuais portugueses travavam um debate ideológico – de um lado os partidários da essência artística, da “arte pela arte”, do outro lado, os partidários da “arte útil”, da criação como… propósito de intervenção, de mudança.
“A Lã e a Neve” terá sido escrito entre 1945 e 1947, num país marcado pela guerra mundial, pela instabilidade política, pelo Estado Novo. Neste contexto de grande crise e pobreza para o povo português, como poderemos enquadrar o trabalho de Ferreira de Castro nesta discussão ideológica? Como poderemos enquadrar a sua obra?
Ferreira de Castro acreditava na arte como um valor em si mesmo, vivendo da sua forma, do seu estilo. Teve por isso o cuidado de uma escrita cultivada, cuidada, instruída, e que subsistiu até hoje sem problemas. “É o primeiro escritor português que não usa gravata”, sublinhava António José Saraiva[1]. Uma forma de realçar as suas origens, mas sem qualquer cunho depreciativo, pelo contrário, enfatizando o seu crescente percurso que o tornou num dos mais elegantes prosadores do seu tempo.
Procurou ser um homem de estudos, para dar carácter aos seus personagens, para lhes dar consistência social. E entendia que as suas ideias, as ideias que marcavam os livros, eram formas de servir a arte. Contudo, vivendo em pleno Estado Novo, pela sua vivência e engajamento nas causas sociais, sabia que todas as ferramentas eram fundamentais para a proclamação das ideias libertárias que defendia. Assim, “a arte pela arte” tão-somente, seria um luxo, e essa era uma palavra, um conceito, a que não podia ceder. Não podia deixar-se arrastar por uma prosa que, afirmou, ser por então “burguesa, industrial, sem ideias, sem revelação de almas, sem nada de nobre, de elevado, a justificar o papel que gastou para ser impresso”[2]. Uma prosa que, segundo ele, servia apenas para justificar uma sociedade aquietada, adormecida nos desígnios da Igreja e do Estado.
Por isso mesmo, mostrou aversão à literatura neutra que não abria caminhos ao leitor. No jornal ‘A Batalha’ afirmou com elevada ironia:
“…não se necessita agora de escritores, necessitam-se de eunucos, cujas palavras tenham a mesma inútil neutralidade da sua virilidade perdida… ”[3]
Esta palavra sem virilidade, era o que ele apelidava de «literatura branca», em contraposição à «literatura vermelha» – aquela que destapava as chagas, e metia os dedos nas feridas.
Dito doutra forma, uma literatura que expunha os males da sociedade para que ninguém pudesse ficar indiferente. Uma literatura-chamamento, que apelava a valores, que apelava à coragem da acção… da mudança!
Ferreira de Castro era filho de uma família humilde de Oliveira de Azeméis, e desde cedo ficou órfão de pai.
Emigrou para o Brasil com apenas doze anos. Passou parte da sua adolescência a trabalhar em regime de “semi-escravatura” no Seringal Paraíso, no interior da Amazónia, onde, contrariando o destino, se iniciou nas letras.
Chega a Portugal em 1919, começa trabalhar como jornalista, no jornal a Batalha, mais tarde O Século. Em 1927 começa a lançar os seus primeiros romances – Emigrantes e a Selva – em 34 já está estava inteiramente dedicado á escrita, com notoriedade dentro e além-fronteiras.
Falo deste percurso, da juventude laboriosa, da integração em redações de jornais onde fervilhavam ideias comunistas, anarquistas, de oposição ao regime, porque isso explica as temáticas que lhe eram queridas.
As classes desfavorecidas, os trabalhadores do campo, os pastores, os contrabandistas, os emigrantes, os migrantes do espaço rural para o espaço urbano, o mundo do trabalho – a industrialização e o meio operário…
Esta era a sua matéria-prima essencial – Homens oprimidos, mas homens de força, homens temerários.
Não tem pejo em afirmar: “Só o trabalho é hoje verdadeiramente epopeico (…) E o homem vai marcando sob a égide desse trabalho assombroso, que é feito de dor e de alegria, mas sempre triunfante e construtivo, extraordinárias horas de epopeia. Hoje Homero teria de recrutar as suas legiões heróicas entre os que trabalham. Os operários são os verdadeiros heróis contemporâneos.”[4]
Talvez por isso Jorge Amado tenha dito que era ele o “escritor do proletariado”. Contudo, creio que é mais que isso, permitam-me que não concorde totalmente. Este livro não nos fala só da luta de classes, fala-nos também de uma luta individual pela dignidade, pelo orgulho, pela realização, pela felicidade, pelo futuro digno para si e para os seus.
O livro tem uma visão essencialmente centrada no esforço de vida de um homem – Horácio – não na classe, não na turba. Se for preciso o protagonista mete “empenhos” a quem possa, para arranjar a casa dos seus sonhos. Responde-lhe o seu colega Marreta: “Tu encontras uma panela com libras e mandas fazer uma casa. Tu ficas satisfeito, mas os outros continuam na mesma.”[5] É uma tentativa de o chamar para os valores colectivos. Ele compreende, mas para já, está empenhado nos seus próprios sonhos. Se for preciso ajoelha-se aos pés da Virgem e reza – o símbolo do seu individualismo.
“… pediu à Senhora da Conceição que O patrocinasse. Murmurou novas avé-marias e prometeu que iria todos os domingos, durante um ano, rezar com a mulher aos pés da imagem, se lhe coubesse uma casa nos Penedos Altos.”[6]
É um livro que nos remete, sim, para a luta individual – repito. Contudo, devo sublinhar, uma luta individual, por vezes até egoísta.
O que Ferreira de Castro nos apresenta, em “A Lã e a Neve”, é um lutador entre lutadores bem identificados. É um colectivo feito de individuais, não uma massa anónima.
É a diferença entre o corporativismo que muitas vezes, defende no seu seio, quem não luta, não se entrega, e espera passivo pelas regalias dos esforços dos outros.
Horácio não é passivo. Horácio não fica à espera que a revolução aconteça, que lhe resolvam os problemas. Porém, é um homem solto, não enquadrado em qualquer organização social, em qualquer colectivo. É um homem individual, que entende que o destino está nas suas mãos e nas de mais ninguém. Entende que só pode contar com o seu sonho, a sua força, o seu sacrifício, a sua tenacidade.
O livro acompanha o seu percurso de lutador, que procura resolver os seus problemas, contrariar o seu destino pessoal e melhorar o seu futuro. Sonha tornar-se operário fabril para melhorar as suas condições sociais; sonha com uma família, e uma casinha em que as “crianças tenham um chão limpo”. Sonha, mas, mais que maldizer a vida, o regime, o capitalismo, ou o que quer que seja, entrega-se ao trabalho – este é o seu grande lema. Sonha, mas entrega-se ao trabalho; Ambiciona, mas entrega-se ao sacrifício; Revolta-se, mas empenha-se nas suas ideias. É solidário nas causas, é solidário nas lutas, mas nunca se ilude – não espera por nada caído dos céus ou do esforço dos outros. No fundo, talvez o espelhar do seu próprio percurso que, de quase escravo no Brasil, se reconstruiu, estudou, mudou o seu destino.
Por isso, sublinho que Ferreira de Castro, nesta obra nos fala do Operário, do Indivíduo, do Homem, não do Proletariado como força anónima, que o romance marca com o ferrete das desuniões e fracassos.
Creio que faz um percurso contrário a outras obras. Mais que o corporativismo, a acção conjunta para o bem de todos, indiferenciadamente, dos que se esforçam e não. Subentende-se d’”A Lã e a Neve” que, Ferreira de Castro, acompanhando a história pessoal de Horácio, faz uma apologia na acção individual, na garra e no potencial de cada um. E, importante, no que esse potencial de cada um, pode trazer aos outros, ao colectivo. Uma acção mais Mutualista – assente nos princípios da força de cada um, e na ajuda recíproca entre os operários, permitindo assim, uma força colectiva, no conjugar de valores e de ideais.
De forte consciência política, mas apartidário, não se apresenta como anarquista puro – é contra a ordem existente, mas não contra toda a ordem.
Entendo por isso que esta, e outras obras de Ferreira de Castro, ao longo do tempo, têm sido por vezes, indevidamente apropriadas, para ilustração de ideias que na verdade não eram as suas.
Ferreira de Castro é antes um IDEALISTA que defende uma justiça social, numa ordem ao serviço dos trabalhadores, que permita a dignidade dos mais fracos, e que permita também, acolher no seu seio, as contrariedades da natureza humana com as naturais divergências de ideias.
Para que serve um livro?
Retomemos a pergunta.
Uma mesma obra são muitas obras diferentes. Depende da época em que é lida; depende de por quem é lido e quando. Se quando saiu, nos anos 40, “A Lã e a Neve” se enquadrava no que eu chamei a literatura-chamamento, hoje o apelo é diferente. Hoje é um retrato que nos fica, um pedaço de vivências de um país e de uma cidade em particular, a Covilhã. A indústria têxtil e os seus operários são o eixo central da sua história, e esta obra é cimeira no manter viva a memória daqueles tempos, uma obra a que podemos juntar outras como o Tear de Tomates do Gabriel Raimundo ou Café Montalto do Manuel da Silva Ramos. A Covilhã e o mundo operário devem muito a estas obras.
Eu li “A Lã e a Neve” duas vezes e nas duas vezes, li de maneira diferente a mesma obra. A primeira vez que lhe peguei, era eu muito jovem, e li um romance sobre uma família como a minha. Que falava de um operário como o meu pai, que vinha a pé da Aldeia do Carvalho para trabalhar nas fábricas da cidade, que trabalhava por turnos, dias e noites, sábados e manhãs de domingo, que sonhava com uma casinha nos Penedos Altos. Falava de mim, que, mais tarde, fui ao seu lado aprendiz de pegador de fios, e depois cardador, e meti desengrosso nos sapatos para ter os pés quentes ao longo das 10 horas seguidas de trabalho.
Era uma obra que falava dos sacrifícios de homens que tiveram uma infância perdida… como meu pai, que começou a trabalhar com 11 anos, tirou a 4ª classe dos adultos, e só leu “A Lã e a Neve” quando já estava reformado e finalmente teve tempo para ele. Para ler e para escrever.
Reler esta obra, foi também o voltar às minhas memórias, do tempo em que também trabalhei na indústria têxtil, também calcorreei a pé esta cidade que cheirava a lã e onde se ouvia o bater metálico dos teares.
Olhando para a juventude de hoje, comparativamente cheia de mordomias, parece que falamos de uma outra era distante. Sim, falamos de um outro século, mas não foi assim tão longe. Falamos de uma realidade ali no virar da esquina do tempo. É um livro com 70 anos, um livro de ontem, mas um livro de mensagem actual, que por vezes mudam os tempos mas não mudam os homens, e num tempo em que os caminhos ainda são de pedras para muita gente, num tempo ainda de vigários, padrinhos, perseguições políticas e poderes descontrolados, cada um é chamado a um novo sacrifício pessoal e à capacidade de lutar pelos novos sonhos.
Obrigado.”
www.joaomorgado.net
[1] SARAIVA, António José, “Iniciação na Literatura Portuguesa”, Ed. Gradiva, p. 158, 1994.
[2] “O sexo na literatura e a sua evolução desde os incestos das tragédias clássicas à novela contemporânea”, Idem, Ano III – 19 de Abril de 1926 – n.º 125, pág. 4.
[3] “O culto da literatura branca”, in: A Batalha – Suplemento Semanal e Ilustrado, Ano III – 12 de Abril de 1926 – n.º 124, pag. 1.
[4] “A Epopeia do Trabalho”, in A Batalha – Suplemento Semanal e Ilustrado, Ano III – 22 de Novembro de 1926 – n.º 156, pág. 5.
[5] “A Lã e a Neve”, Guimarães Editores, 1985, P. 329
[6] “A Lã e a Neve”, Guimarães Editores, 1985, P. 334