Índias

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Excerto

"Portugal inteiro tinha acatado o chamamento do d’el-rei D. Manuel I e acorrido em algazarra lá para as bandas do Restelo. Portugal por inteiro será exagero, mas quase toda Lisboa estava ali à beira-mar para assistir ao zarpar da mais formosa e poderosa armada do reino - treze embarcações, mais de mil e quinhentos mareantes. Partia para as índias com o fito na opulência do Oriente. Se todos aqueles porões regressassem atulhados de especiarias , de perfumes, de ouro e joias, então este seria um dos reinos mais endinheirados da Europa. Entendia-se assim a exaltação que tomava conta dos nobres, do clero, e até do povo, que para alegria lhe bastava uma botelha de pinga e o devaneio de futuras abastanças – é certo que os mais coitados tomam sempre a dianteira dos sonhos, pois são os que mais precisam. Por isso saíram à rua todos os mendigos e estropiados, todas as rameiras e ladrões, todos os saltimbancos sem ossos, os cuspidores de fogo, os malabaristas, tamborileiros e gaiteiros, bobos e farsantes, os ciganos e os cristãos-novos sempre mercadeiros. No centro da capital do reino tudo estava cerrado, das igrejas às putarias, que o povo inteiro estava ali num louva-a-Deus sem fim, amontoado nos terreiros lamacentos do Restelo para assistir à partida do gigante, Cabral de seu nome, capitão-mor da armada, cavaleiro de Cristo, nobre-guerreiro nascido nas serranias da Estrela, em terras de Belmonte.

Vivia-se o oitavo dia do mês de Março, do ano do Senhor de 1500, primeiro Domingo da Quaresma. Só um homem permanecia carrancudo no meio de toda aquela algazarra – Vasco da Gama.

O rei D. Manuel, o primeiro de tal nome, estava exuberante, trajado a negro, carregado de pedrarias finas. Por respeito usava uma cor de luto em honra dos que abalavam sem terem por certo um regresso com vida. Estava anafado num gibão de pele de animal e nuns calções tufados. O seu andar era por isso cambaleante. Caminhava de pernas muito abertas, a balançar a barriga proeminente e os braços esguios até aos joelhos - demasiados grandes para um tronco atarracado e grosso. Apesar de jovem, não tinha ainda trinta anos, dava uma aparência algo burlesca, mas ninguém ousava zombar de el-rei, que os cadafalsos eram fáceis de montar em qualquer praça.

O ponto alto das cerimónias era a sagrada eucaristia em missa na ermida de Santa Maria de Belém, mandada construir pelo Infante D. Henrique. Sua Majestade tinha planos para edificar ali um mosteiro - seria a grande obra do seu reinado.

A par do rei, Pedro Álvares Cabral era a figura central do todo o protocolo. Homem de porte altivo, bem mais alto que o comum dos mortais. Tinha ganho corpo em oito anos de batalhas do norte de África onde fora ordenado Cavaleiro e aclamado como herói na defesa da praça portuguesa da Graciosa. Salvara a vida ao conhecido Afonso de Albuquerque, conselheiro real, e diziam que este era o seu braço protector junto da Coroa. Tinha a pele tisnada ainda pelo sol, barbas bem aparadas, um olhar firme e sempre atento aos pormenores. O seu escudeiro erguia o estandarte com as armas dos Cabrais, em tons de prata, com duas cabras passantes de púrpura, uma sobre a outra.

“Viv’ó Cabral”, clamava o povo Só um homem permanecia carrancudo no meio de toda aquela algazarra – Vasco da Gama.

A ermida era pequena para todo o cerimonial. El-rei convidou o capitão-mor para se sentar ao seu lado direito, num palanque reservado junto ao altar - naquele dia não estava corrida a cortina que lhe dava o habitual resguardo, queria ser visto com o herói do momento. Mas, precavido, mandara colocar um estrado maior na base do seu cadeirão, por forma a se mostrar mais alto, bem mais alto que o Cabral. Era um dia de multidões, de ovação, de vénias, não queria perder a face – o gigante não lhe podia passar do ombro. Acima dele só mesmo Deus. Por isso, em seu louvor, mandara engalanar a capela com muitas velas e archotes, defumar o ambiente com incensos, encher os ares de cânticos gregorianos. Paramentando com ostentação e rodeado de dezenas de religiosos, o recém-designado bispo de Ceuta, Dom Diogo Ortiz, oficiou a cerimónia. No seu sermão não aforrou palavras para dar conta da grandeza de Sua Graciosa Majestade, homem de visão divina, que de tanto ousar nas águas da imensidão, por certo dilataria as fronteiras do reino até à edificação de um vasto império. Mas também não olvidou Cabral de quem fora mestre nos tempos idos de mancebo, e com o qual se voltara a cruzar em terras marroquinas, em Tânger, onde fora prelado durante quase uma década. Não foi parco em adjectivos para engalanar o nobre-guerreiro pelas “proezas obradas em áfrica”, sublinhando a sua sagacidade e o poder de corte da sua espada na peleja contra os infiéis de Alá. Segundo ele, Pedro Álvares Cabral era um ser de luta mas também de coração, um homem agraciado pela fé, temente a Deus, puro nas vontades. Quando foi chamado ao altar e se ajoelhou perante o bispo, Cabral foi aspergido com água benta para que o Espírito Santo o guiasse aos confins do mundo e o amparasse perante os infiéis. D. Manuel colocou-lhe o chapéu de comando na cabeça e transmitiu-lhe os estandartes com as insígnias do reino. Dom Diogo Ortiz entregou-lhe ainda um barrete que, assegurou, ser presente do próprio Papa Alexandro VI, Chefe visível da Igreja.

Todos gritavam hossanas, só um homem permanecia carrancudo no meio de toda aquela algazarra – Vasco da Gama.

O séquito saiu da ermida de Santa Maria de Belém em direcção ao porto de mar. Em passo lento seguia um frade com uma cruz de ferro bem altaneira, seguido de um outro com o estandarte da Cruz de Cristo. Seguiu-se Sua Excelência Reverendíssima o bispo Ortiz e demais religiosos, e debaixo de um sobrecéu em seda, caminhou o Rei de Portugal, D. Manuel I e Pedro Álvares Cabral – capitão-mor da frota. O cortejo continuava com os restantes capitães da armada e os respectivos estandartes com as armas de famílias, o alto clero, familiares do monarca, ministros d’el-rei, cortesãos e outros fidalgos de somenos.

Em terra, as gaitas de foles, as trombetas, as charamelas e os tambores, davam sinais de arraial popular, no mar soavam tiros de bombarda das naus. Depois de mais um cerimonial de despedidas d’el-rei, Cabral e os seus homens entraram nos batéis e rumaram para as naus ancoradas ao largo. Sentia-se um cheiro a maresia e aventura. “Praza a Deus, que tudo lhes corra bem…”, exclamou o soberano esperançoso.

As velas com a Cruz de Cristo em vermelho sangue foram içadas, era hora da partida – a histeria tomou conta do povoléu que lançou gritos de júbilo, só um homem permanecia carrancudo, ar pungido, no meio de toda aquela algazarra – Vasco da Gama.

Ele fora o primeiro a desatar o caminho marítimo até Calecut, o primeiro a galgar a rota da pimenta e das bonanças. Era ele, ele e mais ninguém, quem deveria estar ao comando daquela frota que agora içava âncoras. Era ele, ele e mais ninguém, quem devia ter recebido os louvores de Sua Majestade e o estandarte real. Era ele, ele e mais ninguém, quem deveria ser a cabeça de todas as armadas que da Ribeira das Naus partissem para o oriente… assim lhe fora prometido por Sua Majestade… Ora, logo na primeira armada que se seguiu, a maior, a mais lustrosa, seu nome fora arredado do mando para sua grande desonra. “Traição”, gritava ele todos os dias, mas apenas por dentro dele, que as ofensas a um rei que não cumpre sua palavra dada, não podem ser gritadas aos ventos, sob pena de cair num calabouço a pão e água.

Ao largo, as naus e caravelas tinham içado os panos e alevantado as âncoras, mas não soprava um vento. Nada, nem uma aragem. As madeiras baloiçavam em águas mansas e as velas permaneciam escorridas. Os barcos não se moviam. O povo aguardou ainda pelo tempo e uma missa, mas depois esmoreceu o olhar na paisagem e desandou à sua vida. El-Rei também se enfadou de tanto atender por ventos a favor, entrou na sua carruagem e enveredou caminhos fora rumo ao Paço Real de Sintra. A fidalguia e os religiosos logo lhe seguiram o exemplo. Não estava Deus pelos ajustes em tão relevante empreitada dos homens. Havia rezas, mas não ventos. Um mau presságio para a viagem, pensou Vasco da Gama com um sorriso de aprazimento por entre a barba farta. Tinha ainda a alma ressequida com a afronta – ter sido substituído por um cão do deserto sem traquejo de mar. Que descuido divino tal consentira, questionava-se ele. Era sabido que a sua chegada a portos malabares não tivera o mais ditoso dos desfechos, mas a verdade é que arreganhara os mares para um novo mundo possibilidades, uma nova era de sonhos. O reino devia-lhe isso, vozeava ele por dentro. Por isso questionava-se: que artes do demo o tinham despegado da glória e o tinham aviltado aos olhos do soberano? quem o arrojara à lama, obrigando-o a ficar em terra a fitar os que partiam ufanos a caminho da glória que só a ele cabia?

Só no dia seguinte as velas ganharam vida, as cruzes de sangue agitaram o nome de Cristo e a armada ganhou andar. As treze embarcações rasgaram as águas mar adentro para regozijo de alguma populaça que permanecia no porto.

A uma voz todos gritaram hurras de alegria, agitaram barretes, lançaram foguetes, só um homem permanecia carrancudo no meio de toda aquela algazarra, a blasfemar contra todos os que partiam, a afiançar desforra – Vasco da Gama".


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