Fernão de Magalhães e a Ave-do-Paraíso
Excerto
"O
regresso às águas empolgou aquela gente que não vivia sem o cheiro salgado da
maresia. O balanço da nau voltou a ajustar-se com o bater do coração dos
marinheiros. A proa ia rasgando as águas frias e seguindo para sul, mas o frio
e o vento forte persistiam. Magalhães mandou colocar um canhão na proa, para
disparar contra as verdadeiras ilhotas de gelo que lhes apareciam pela frente.
Teve de amainar os panos altos, o velacho e a vela da gávea. Era preciso um
sulcar mais lento.
“Conseguiremos
ir tão a sul?”, perguntava Rebelo, que sempre perguntava o que os outros não
ousavam. “Claro que sim!”, garantiu o capitão sem muitas convicções, andando de
um lado para o outro. Esperava encontrar já um tempo mais favorável, mas estava
ainda mergulhado num Inverno que parecia não acabar.
No seu camarote, estendeu a carta de marear sobre a banca e chegou a lanterna para se ver melhor. “Este é o mundo tal como o conhecemos…”, mostrou ele ao jovem, passando a mão sobre a carta.
“Vê, aqui é o fim das áfricas dos negros”, disse apontando com o dedo o Cabo da Boa Esperança.
“Aqui passou Bartolomeu Dias, já lá vão mais de três décadas.” Com o dedo contornou o continente marcando a rota do marinheiro. “Descobriu um cabo onde todos julgavam que era o fim-do-mundo… Foi essa descoberta que permitiu a Portugal a carreira das Índias com toda a riqueza que de lá vem… Recorda este nome: Bartolomeu Dias. Daqui a 500 anos ainda falarão dele”, garantiu.
Rebelo olhou aquela imensidão de mares e perguntou:
“E nós, onde estamos…?”.
Magalhães pegou nos seus apontamentos e assinalou no mapa.
“Este cabo está a 34 graus a sul. Bartolomeu, chamou-lhe o cabo de todas as tormentas.”
Depois colocou uma régua, e apesar da oscilação da nau, tentou gizar uma linha recta pelo Atlântico afora até bater no debuxo das terras do novo mundo. Ali assinalou um ponto.
“Aqui, na mesma linha, a 34 graus a Sul, está o Rio da Prata, onde estivemos logo no início do ano, lembras-te?” Rebelo assentiu com a cabeça e acompanhou com o dedo a linha.
“Então, quando chegámos ao Rio de Solis, já tínhamos ido tão longe como Bartolomeu Dias?”, questionou ele, estupefacto.
Magalhães sorriu. “Mais longe que Bartolomeu, mais longe que qualquer navegador… tanto que, o sítio onde navegamos ainda nem vem bem assinalado nesta carta”.
Depois foi buscar os seus assentos e rascunhos, e trouxe consigo uma carta que ele próprio estava a desenhar com ajuda de Andrés San Martín. Ali tentava marcar a orografia da costa, e já estava assinalada baia dos Trabalhos e a de São Julião, onde tinham permanecido.
“Nós vamos debuxar novas cartas. Mas, repara, se o cabo das Tormentas estava a 34 graus para sul, nós estamos a uns 50 graus, bem mais longe, bem mais a sul. Por isso tanto gelo, tanto frio… estamos onde nenhum homem ousou”, asseverou o capitão com orgulho.
Rebelo bebia as palavras do capitão e atirou com
um sorriso: “Daqui a quinhentos anos, ainda falarão de Magalhães!” Nesse
momento a lamparina oscilou violentamente no gancho em estava presa. Um feixe
de luz oscilou no camarim e apagou-se. Os dois saíram para o varandim do castelo
popa sem mais conversas. Eram horas de
véspera, estava a escoar-se a luz do dia.
Aquele sul mostrava-se bravio e danoso. O mar estava encrespado, as vagas ganhavam alturas de montanhas abrindo vales profundos e negros que a todos atemorizava.
“Está a ventar com muita fúria, capitão…”
O vento estrava por bombordo, podia arrastá-los demasiado para a costa. Não se podia continuar a correr ao sabor daquele vento agreste. O capitão ordenou que amainassem o resto das velas - algumas já rasgadas. E mandou que se apagassem todos os lumes dentro da nau. Deveriam manter apenas o farol - uma casinhola em ferro situada na popa do navio, que era um ponto de luz nas traseiras da Trinidad, para que as outras naus a seguissem. “Mas com dois homens sempre de atalaia, não vá o diabo tecê-las!”
De repente o tecto de nuvens abriu-se e começou a
chover. E não tardou o granizo para fustigar a nau. Era tal a sua força que
marcava as madeiras, e tal a quantidade que o tombadilho ficou branco no tempo
de uma prece. Os gelos batiam no casco da nau como rochas soltas arrojadas
pelos diabos. A cada pancada uma reza, uma súplica, um pedido de misericórdia a
Deus, por parte da tripulação que de joelhos se encomendava fervorosamente à
Senhora de Vandoma ou a Santa Maria da Esperança Marcarena, consoante a língua
em que oravam. “Todas são
a mesma, una e santa, a mãe extremosa de Jesus, filho de Deus feito homem… “,
exclamou um dos padres. E Valderrama logo entoou um salmo. “Miserere mei, deus: secundum magnam misericordiam tuam. Et secundum
multitudinem miserationum tuarum, dele iniquitatem meam…”[1]
De repente a proa embateu em algo com violência, estancou o navegar, como se tivesse chocado com terra firme. Revoltaram-se os adentros da Trinidad, todos foram arrojados ao chão com violência, revoluteando dentro daqueles cascos de madeira. O frade gritava: “Lava-nos das nossas faltas, purifica-nos dos nossos pecados…!”
Havia homens estatelados pelo chão, entremeados com as mil coisas que se tinham desprendido - cofragens, cordoalha, restos de velas, pequenos tonéis, baldes de madeira, peças de carpintaria, lenha e grelhas de ferro dos assadores, ferramentas soltas, carga mal segura e pelouros de metal. Na varanda do castelo de popa, Magalhães saltou o varandim com o impacto e caiu desamparado sobre o granizo que enchia o convés.
“Capitão…”, gritou o jovem Rebelo, agarrado ao mastro. Quando a nau estancou os solavancos, olhou para os fundos e divisou o vulto do capitão estatelado no chão, sem se mexer..."
[1] “Tem piedade de mim, ó Deus, segundo Tua
misericórdia infinita. E pela Tua compaixão, apaga as minhas culpas…”

