CABRAL
Excerto
O
Novo Mundo
“Colombo
estava errado”, avançou Vespúcio, que não perdera pitada de tudo quanto se
dissera e tudo parecia anotar em sua cabeça. “Cuidou ter arrivato às Índias,
mas enganou-se. Na verdade, não esteve nas terras de que falou Marco Pólo, ou
de que falais vós, capitão. Na sua viagem, em mil quatrocentos e noventa e
dois, chegou, não às Índias, mas sim a um continente vasto a que, creio eu,
também vós haveis chegado, capitão.”
Pedro
Álvares Cabral levantou o sobrolho, mas não se mostrou demasiado surpreso.
Poisou o copo de vinho e olhou-o bem na fronte, com toda a tenção. A luz da
candeia era já fraca, mas queria ver-lhe os olhos que ele procurava ocultar na
sombra. “Dizeis, então, que estamos perante um novo continente?”, inquiriu como
se nada soubesse para assim indagar assunto. “Sim, capitão, estou em crer que
sim. Uns tempos antes da vossa chegada a Vera Cruz, eu próprio, ao serviço dos
Reis Católicos, andei por terras idênticas, mas bem mais longínquas e bem mais
para norte. Segundo os cálculos do vosso mestre João, que eu de bom grado
estudei, essas terras estarão ainda dentro dos limites do Tratado de
Tordesilhas[1]
para a posse de Portugal — a isso vou nesta expedição, para estimar com mais
rigor por onde o meridiano atravessa a costa. Mas adianto-vos, capitão, eu
aportei já em outras terras que estão muito além do Meridiano de Tordesilhas,
logo sob a alçada da coroa espanhola. Acreditai, estamos perante um novo e
desmedido mundo e a vossa viagem ficará na história dos povos, pois vosso
achado é bem mais relevante que os alcançados por Colombo!”, foi traduzindo o
paciente Gama.
“Um
novo continente?”, questionou Frei Henrique. O religioso fez questão de esfriar
os ânimos, atestando que tal era impossível à luz dos estudos bíblicos,
porquanto Noé só tinha tido três filhos — Jafet, Sem e Cam. Esses descendentes,
depois do dilúvio divino que arrasara com o mundo dos pecadores, tinham tido a
incumbência de povoar cada uma das três partes da terra. Teria Jafet ficado com
a Europa, Sem com a Ásia e Cam com a África. Ora, concluía o franciscano, “não
tendo Noé mais filhos, não haverá por certo outro continente povoado”. Ficaram
pasmos os navegantes com tais palavras e fez-se um silêncio incómodo. Entre um
ligeiro tossir e um sorriso mal disfarçado, os homens aproveitaram para se
servir de água e de vinho, e como, para além de navegantes, eram homens de fé,
nada disseram por consideração a Frei Henrique.
Jesus
Belomonte, embriagado não pelo vinho, mas pelo sono, para aconchegar um pouco
os buchos dos comensais, ainda serviu frutos secos com mel e carne afatiada e
também uns biscoitos feitos nas Índias com uma farinha extraída da palmeira. O
ondular da nau embalava e o vinho amolecia o corpo, mas, mesmo assim, entre
comes e bebes, Vespúcio manteve uma acalorada conversação com Gaspar da Gama, o
que pouco aprouve a Cabral — não esquecia que o seu convidado era florentino e
estivera ao serviço dos espanhóis. Desconfiava sempre dos estrangeiros que
serviam a muitos amos e que tinham sempre muito que levar e trazer. Jurou a si
próprio manter-se de atalaia às palavras mansas daquela estranha figura, e não
mais lhe dar informações sobre a sua viagem. Entretanto, queria acabar a afável
prosa com os dois capitães agora ressurgidos, Diogo Dias regressado das brumas
e Afonso Gonçalves, que partia para consolidar as terras achadas.
Pedro
Álvares Cabral estava feliz, pois via confirmado que el-rei sabia que lhe havia
conquistado terras no novo mundo, ainda que aquele vasto continente, ao que
percebera da conversa com Vespúcio, fosse dividido com Espanha. E pensava como
fora estudado e astuto el-rei D. João II, que tanto admirava, ao pressionar os
Reis Católicos para que o meridiano divisório do mundo no Tratado de
Tordesilhas se localizasse não a cem, mas a trezentas e setenta léguas a
ocidente do arquipélago de Cabo Verde. Assim, tinha salvaguardando a sua
influência no Atlântico e o domínio exclusivo da Rota do Cabo, já descerrada
por Bartolomeu Dias, e que se afigurava ser o verdadeiro e único caminho
marítimo para as Índias. E deixara ainda uma salvaguarda para eventuais terras
a ocidente[2]. Aos reis de Espanha
cabia-lhes apenas o logro em que se transformara Colombo, que “tinha chamado
índios aos selváticos que achara na floresta, julgando, o mui fumoso[3], estar em terra das Índias.
Nem ele sonhava em como eram faustosas as terras do Oriente, chão onde ele
nunca poria os pés.” Mas,
interrogava-se, seriam as terras pisadas por Américo Vespúcio[4] o mesmo continente de
terras em que ele mesmo aportara, a sua Vera Cruz? A ser verdade, então seriam
de uma extensão enorme aquelas terras de que falavam, e o seu achado poderia
ser de um valor incalculável para Portugal, pensou para si próprio. “Acaso,
teria tido Noé um filho ilegítimo, a quem mandara povoar uma quarta parte da
terra sem conhecimento da família?”, ainda cuidou Cabral entre um sorriso e
persignando-se depois, como desculpa pelo seu pecado venial, pelo jocoso dos
seus pensamentos em relação a uma figura bíblica. Tinha sido um dia assombroso.
Deitou-se e adormeceu sonhando com o seu pedaço de honra.
[1]
O tratado entre o reino de Portugal e o recém-formado reino da Espanha foi
assinado na povoação castelhana de Tordesilhas, em 7 de Junho de 1494, e
dividia o mapa terrestre em dois. Dentro do seu hemisfério, cada reino tomaria
posse das terras “descobertas e por descobrir”, sem mais contendas com o
reino vizinho. O tratado definia como linha de demarcação dos territórios de
posse, o meridiano a 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão, no arquipélago
de Cabo Verde. Esta linha estava situada a meio caminho entre estas ilhas,
então portuguesas, e as actuais ilhas das Caraíbas descobertas por Colombo.
(Depois de uma guerra diplomática, a 22 de Abril de 1529, o Tratado de Saragoça
consagrou definitivamente que o meridiano de Tordesilhas no hemisfério oposto,
seria a 297,5 léguas a leste das ilhas Molucas).
[2]
Presente durante as conversações oficiais, o espanhol Frei Bartolomeu de las
Casas escreveu no livro História de Las Índias: “Ao que julguei, tinham os
portugueses mais perícia e mais experiência daquelas artes, ao menos, das
coisas do mar, que as nossas gentes.”
[3]
Vaidoso
[4]
Américo Vespúcio divulgará mais tarde as suas aventuras no novo continente – ao
que se sabe, nem todas verdadeiras. Ainda assim, conseguiu que alguns
cartógrafos colocassem nos mapas a referências às terras conhecidas por Américo
– mais tarde conhecidas como Américas.

