O plural de mim somos nós! E o plural de agora é eternamente!

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In: Diário dos Imperfeitos, p.139

«… NAQUELE DIA, na ordem natural de todos os dias, entre o remorder da chuva, passo-a-passo, os pais calcorrearam os caminhos de sempre, em direcção aos amargos empregos de sempre. Cumprindo a ordem natural dos dias, também Laura e a irmã saíram a caminho das aulas, bem cedo, como quase sempre. E na mesma ordem natural dos dias, o armazém de fazendas do Sr. Mendes também abriu portas nessa manhã, como em todas as manhãs, infalivelmente, às nove horas em ponto. Mas o Santiago, sempre pontual, naquele dia faltou. Assim como a Laura, que tinha uma visita de estudo do liceu, e ao contrário do que sempre acontecia, não foi vista entre os colegas.

~Photo@alex_shebanov

Contrariando a ordem natural dos dias, ambos tinham mudado os caminhos para enganar as sombras. A fazer lembrar o costume ancestral das igrejas que tinham dois relógios, um que dava as horas certas, e outro que dava as horas erradas; acreditava o povo que assim podiam enganar o diabo para ele nunca saber o santo horário da missa. O corpo e sangue de Laura eram a missa de Santiago. Mas todos os diabos souberam a hora certa. Todos os diabos rodearam a cama – sacrossanto altar do quarto em que se refugiaram -, para verem como o corpo dela se despia às mãos trémulas do Santiago, incipiente ainda no ministério do prazer carnal. Aquela manhã era toda a manhã do mundo; a manhã em que tinham deixado as sombras do lado de fora da porta e queriam dançar em toda a luz.

Ouvia-se o vento inquieto no arvoredo. Curiosa, a chuva fustigava ruidosamente a janela, mas sem desfazer o nevoeiro baço que se tinha apegado aos vidros. Por isso a luz estava ausente daquele quarto pardacento da Laura. Teriam que descobrir a luminosidade interior dos corpos, despindo as roupas e arrojando-as ao chão juntamente com os pudores. Despir a vergonha juntamente com o camisolão colorido e deixá-la cair junto à saia amarrotada que se estendia pelo tapete, ao lado das meias de lã e das botas molhadas. Despir os receios, como quem despe as calças e as deixa tombar sobre a camisa abandonada no chão, com as mangas reviradas do avesso.

Deram as mãos e, pela primeira vez, nervosos, tremendo, estreitaram a pele de corpo inteiro. Entrelaçaram as pernas e os braços como num bordado de bilros e teceram uma fina renda de ternuras e carinhos por entre o calor molhado das intimidades. Laura abandonou o seu corpo esguio ao aconchego do corpo forte de Santiago. Sempre imaginara que ele, em toda aquela força incontida, a tomaria para si em loucura. Muitas vezes teve medo desses pensamentos, mas também é certo que, em noites mais quentes, sentiu um despudorado desejo de lhe sentir o corpo violentamente incrustado no seu, arrebatador, bruto, animal. Mas no meio dessa excitação, ao mais fundo de si, sempre regressava o medo. Por isso, o seu interior oscilava entre o temor e o desejo, temente do que estava por vir, na ânsia do que viria. Mas Santiago logo tratou de a sossegar.

Acariciava-lhe o corpo como se pegasse num pássaro – suficientemente forte para o prender, terno o suficiente para lhe dar liberdade.

Os seus lábios lavravam as contracurvas firmes da sua carne, a língua serpenteava suavemente, as mãos alimentavam-se de pele. Laura sentia como o gelo e fogo coabitavam em si, e sentia que uma luz se desprendia do seu interior a cada

~Photo@alex_shebanov

toque, a cada beijo, a cada olhar; uma luz forte que se desprendia do seu interior mais profundo, nos muitos toques, nos muitos beijos, nos muitos olhares. E aos poucos, aos poucos, deixou que essa mesma luz tomasse conta de si, que os toques se transformassem em carícias quentes, que os beijos deixassem de ser muitos mas se tornassem longos, que os olhares se recolhessem nas pálpebras cerradas. O gelo derreteu-se pelo corpo quente e sentiu-se húmida. Deixou que o Santiago lhe entrasse nos poros como um sopro, que os beijos se transformassem em pão que alimenta, e as carícias fossem chão e raiz. E porque se tornou parte do seu corpo, não o travou quando este lhe desnudou o peito, lhe redesenhou com beijos o arco ovalado dos seios e lhe sorveu todos os prazeres que despertavam à flor da pele.

Santiago tinha perdido a noção do mundo lá fora. Naquele momento, todo o mundo estava na sua boca, por onde escorria um sabor quente de mulher, estava nas suas mãos regadas de intimidades, estava no pulsar nervoso do sangue dentro de si. Compreendeu então que as mulheres são como o globo terrestre, onde se pode viajar na circum-navegação dos sentidos, sempiternamente, sem nunca ter um fim. Mas também aprendeu que não se podem alcançar todos os portos na primeira viagem.

– Não!… – exclamou Laura, sustendo-lhe o ímpeto do corpo entre as suas coxas. – Não!

Por favor, hoje não… – repetiu ela.

 

– O plural de mim somos nós! E o plural de agora é eternamente! Por isso, temos tempo…! Nós temos todo o tempo do mundo! – respondeu Santiago com um beijo.

 

Laura ouviu uma harpa tocar naquele instante mágico; dentro da cabeça dela ouviu uma harpa. E assim permaneceram abraçados, ouvindo a chuva contra a janela e iluminados pela luz que saía dos seus corpos, até que a pele dele se despiu da pele dela, e as almas entrelaçadas se dividiram em partes iguais para o corpo de cada um…

 

PRÉMIO LITERÁRIO VERGÍLIO FERREIRA 2012

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“Um genuíno drama camiliano, só deste se diferenciando quanto ao conteúdo da narrativa, pela utilização de uma linguagem urbana actual e pela absolutização da sexualidade. Todas as relações começam e acabam com a ênfase na sexualidade, tanto como desejo angélico quanto como brutalidade carnal, a maioria das vezes, porém, identificado com o maior e mais sensitivo prazer humano. Neste sentido, Diário dos Imperfeitos evidencia-se como um verdadeiro hino ao amor desinteressado (Santiago e Laura), com laivos de algum erotismo…”

Miguel Real, escritor, ensaísta, critico literário IN: Jornal de Letras,

 


 

A Menstruação, o inferno que recorda às mulheres o seu pedaço de céu