Colóquio “Cultura(s): Percursos, Definições, Desafios” UBI – Faculdade de Artes e Letras – 12.OUT.17
” (…) Confesso que a primeira reação foi fazer a pergunta aos meus amigos, de Castelo Branco até à Guarda. Devo confessar que ficaram perplexos sem saber bem o que responder. O que nos leva a depreender que não há uma resposta óbvia.
Levantam-se desde logo dúvidas existências:
O que é ser Beirão? E ser Beirão é… ser de onde?
da beira-baixa? da beira-Alta? da Cova da Beira? da Beira Interior? da beira Interior Norte? da beira Interior Sul?
A administração do território evoluiu ao longo dos tempos:
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Nos primórdios tivemos as Comarcas
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No Séc. XVII – As Províncias
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No Séc. XIX – As prefeituras
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E mais tarde os Distritos
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No Séc. XX repusemos a Províncias
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Em 1969, na sequência do III Plano de Fomento Nacional, criamos as Regiões e Sub-regiões de Planeamento
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Em 1986, no âmbito da União Europeia, Portugal criou as unidades territoriais para fins estatísticos – As NUTS
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Agora recentemente, as Comunidades inter-urbanas.
Estas divisões podem ser quantificadas estatisticamente: território; população; empresas; rendimentos… o que necessário for, pois como sabem, uma simples folha de excel faz maravilhas com os números!
Mas como disse o economista americano, Aaron Levenstein, “a estatística é como um biquíni. O que mostra é sugestivo, mas o que esconde é essencial”
Talvez estas divisões nos digam muito em termos políticos, estatísticos, económicos. Talvez tenham sido importantes instrumentos de gestão administrativa. Mas, na verdade, pouco nos dizem o que somos culturalmente enquanto povo.
“…a paisagem e a linha do horizonte marcam o pensamento do homem e este é a essência da sua cultura”
Assim, com todas estas divisões já nos uniram à Extremadura, já nos ligaram a Coimbra, já nos esticaram até ao Douro, já nos abandonaram como um pequeno distrito, já nos casaram com outro pequeno distrito, já nos retalharam em NUTS e comunidades. Ou seja – e perdoem a brincadeira – parecemos uma senhora da má-vida que um dia vais com uns e no outro dia, é empurrada para os braços de outros.
Ou numa versão mais católica: parece a história da menina órfã que é acomodada aqui ou além com boa-vontade e espirito cristão, mas a quem todos fazem questão de sublinhar que não pertence à família…
Pegando numa palavra que meu avô usava, o “tornadouro” – que era onde se mudava o sentido das águas quando se regava o campo – esta região era no mapa de Amorim Girão, em 1933, o tornadouro entre a Beira Transmontana e a Beira Alentejana. Ou seja, um território mal definido, na transição do rochoso para a planície.
Ora, sabemos que a paisagem e a linha do horizonte marcam o pensamento do homem, e este é a essência da sua cultura. Mas o que se vislumbra em Castelo Branco não é o mesmo da Guarda, nem é o mesmo de Seia… então como esperar um pensamento similar? Uma atitude, um comportamento, uma cultura comum?
A Beira Interior é uma divisão política, mas dificilmente será uma divisão com caracterização cultural própria. Porque essa não se impõe por decreto, sedimenta-se ao longo de gerações.
O que é uma identidade cultural? Não sou um académico, tomarei para mim uma definição simples. Uma identidade cultural é um território definido, com um conjunto de valores intrínsecos, denominadores comuns que nos identificam, nos personalizam e, sobretudo, nos distinguem dos demais.
Pergunto: Há um denominador comum entre um albicastrense e um egitaniense? E poderá um covilhanense revêr-se nesse denominador? Creio que não.
E pergunto: o que temos que, verdadeiramente, nos diferencie das outras regiões?
A imagem do Beirão está cimentada numa certa ruralidade e na sua etnografia. Um povo católico, conservador, cuja cultura foi influenciada por séculos de superação e adversidades. A geografia e uma história marcada por tempos árduos de fome, de guerra, de emigração, de desertificação, transformaram a cultura beirã num quadro de luta constante contra o destino agreste, com o suor do rosto e a honestidade da sua palavra.
Mas esta é uma imagem idêntica a quase todas as regiões do interior. Não nos distingue.
E mesmo assim, este é um álbum de fotografias a preto e branco que já não nos representa.
Esta já não é a beira de hoje. A beira de hoje está rasgada por auto-estradas, por comunicações, por indústrias, pelo ensino superior. Já não somos essa beira rural, católica, fechada, sofrida… até um certo linguajar regionalista desapareceu.
Então, o que nos caracteriza ainda?
Um político local dizia-me que o único que temos hoje em comum, é uma certa “cultura da implosão e de guerras intestinas”.
Meio a rir meio a sério, não deixa de mexer numa certa ferida da nossa maneira de ser e estar. Aliás, essa rivalidade interna, pode explicar o reforço das identidades locais e a anulação de uma personalidade regional convicta e forte.
Há hoje uma identidade da Covilhã, do Fundão, de Belmonte, da Sertã, de Almeida… mas poderemos falar verdadeiramente, de uma identidade marcante da Beira Interior?

Pela minha parte, dizer que não, pode parecer uma heresia, não me atrevo a tanto, mas estará certamente pouco explícita. Entendo que há uma forte cultura na região, mas haverá uma cultura beirã, sedimentada, que nos distinga claramente?
Disse Virgílio Ferreira: “Disseste ou escreveste milhões ou muitos milhares de palavras. E deve haver nessa nebulosa uma estrela que seja a tua. Mas não a saberás nunca.”
E digo eu: Talvez haja uma identidade cultural nessa nebulosa da nossa diversidade e não o saberemos … de tão difusa que está.
Vejamos:
Já vivi em Lisboa e no Porto.
Se me perguntavam se era eu beirão? Eu, claro, dizia que sim. Uma daquelas afirmações de pertença, que se assumem com orgulho. “Sou Beirão”
Mas, na verdade, para além de uma orientação geográfica sobre as minhas origens, não creio que esta asserção lhes trouxesse outra qualquer informação relevante – a tal identidade que não é visível. Já quando alguém nos diz ser Alentejano, Algarvio ou Transmontano passa-nos um quadro de referências que vai muito além da geografia.
Ajustamos essa pessoa a uma paisagem, a uma gastronomia, a um estilo musical, a um sotaque, a um contexto social…
Até mesmo as anedotas, só são entendidas tendo por base um quadro mental que temos do espaço e das suas gentes. Há portanto uma identidade cultural dessas regiões que é claramente perceptível. E não falo de modelos académicos, mas sim de menções de reconhecimento simples, popular.
Acontece que, quando eu dizia que era Beirão, nunca entendi que isso suscitasse grande conversa, a não ser de pessoas que aqui tinham raízes ou amigos. Uma ligação mais pessoal que cultural, portanto.
E mesmo quando acontece, juntarem-se dois beirões, não é propriamente um encontro de irmãos. Fazem logo questão de separar as coisas.
“Tu de onde és? Eu sou daqui. Eu sou d’álem.”
Fica cada um a defender a sua terra, o seu quinhão, como dois vizinhos a discutir o muro de partilha das quintas.
«Nunca me identificaram como beirão, mas sempre me tomaram como serrano.»
Caros amigos,
por vezes temos de olhar para nós com os olhos dos outros. Quando trabalhei em Lisboa tinha uma equipa de vendas onde se juntava uma alentejana, um madeirense e um algarvio. Eu era o Serrano – não o beirão.
Quando trabalhei no Porto. Eu dizia: Este fim-de-semana vou lá abaixo, à Covilhã
E eles corrigiam-me: não você vai lá acima, que a serra é mais alta.
Ou seja, a serra era a referência.
Ainda hoje, quando vou a Lisboa, os meus amigos dizem por graça “que o lobo da serra desceu à cidade”.
Ora, o que nos dizem estas histórias?
É que fora desta região, nunca me identificaram como beirão, mas sempre me tomaram como “serrano”.
E mesmo dentro desta região, da dita Beira Interior, aconteceu o mesmo. Quando trabalhei em Castelo Branco eu tratava os meus amigos por rolheiros – remetendo-os para a cortiça, para a planície, dizendo que eram norte-alentejanos. Eles tratavam-me por lãzudo, remetendo para a pastorícia, para a serra. Uma vez mais a separação dentro da mesma região.
Nestas histórias, o denominador comum é sempre a serra. Isso remete-nos para uma marca, essa sim, reconhecida, a Serra de Estrela. Há todo um quadro de referências identitárias:
O lugar mais alto de Portugal continental… / A montanha / O granito / A neve / O pastor / O burel / cão da serra / O queijo da Serra / A carqueja / O zimbro / O cabrito / O turismo / A própria literatura …
Este são Pontos-chave facilmente identificáveis por todos os que nos observam, e perfeitamente assimilados por quem cá vive.
Há assim mais afinidades entre as povoações e gentes que vivem na corda da serra, do que os que vivem no eixo Castelo Branco – Covilhã – Guarda. Grosso modo, este eixo resume-se a coordenadas do GPS, já a encosta da Estrela constitui um elo cultural – incorpora uma verdadeira e forte identidade. A montanha surge não como factor de separação mas, pelo contrário, como agregador de uma cultura própria.
No romance “Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra”, Mia Couto, escreveu:
“Eu quero a paz de pertencer a um só lugar, eu quero a tranquilidade de não dividir memórias.”
Ao contrário da beira – seja qual for a sua configuração geográfica -, a Serra de Estrela é para muitos um lugar de pertença, onde não se dividem memórias com ninguém. É o lugar onde as raízes culturais mais se consolidaram e sobreviveram ao desgaste da modernidade que tende a uniformizar tudo, a globalizar tudo.
É uma caso a debater, mas… a nódoa no peito de nos encostarmos ao cajado pode ser a referência forte da nossa cultura, a nossa marca identitária mais importante.
Obrigado”
João Morgado
Gabriel Magalhães & Urbano Sidoncha (Org.) – Cultura(S): Definições, Desafios, Percursos
A aposta nos estudos da cultura foi cedo entendida pela Universidade da Beira Interior e pela sua Faculdade de Artes e Letras como uma diretriz estratégica, que vinha dar resposta a demandas de ordem e natureza diversas que há muito se faziam sentir.
Essas necessidades não vinham apenas do exterior, traduzindo o reconhecimento crescente que à cultura era devido nas mais diversas esferas da vida em comunidade – política, social, económica.
Foram também necessidades de outra índole, de natureza endógena, traduzindo desta feita uma ideia de comunidade que, enquanto academia, desejávamos e desejamos ser, indicando de permeio um novo e decisivo impulso que pretendíamos dar à investigação em cultura, aos seus fenómenos respetivos e aos seus múltiplos e riquíssimos desdobramentos.
Cultura(S): Definições, Desafios, Percursos funciona como mais um passo dado em todo este trajeto.
De facto, são já várias as publicações que levámos a cabo, mas, nestas páginas, fica particularmente patente a “vida íntima”, por assim dizer, do trabalho que se tem realizado na Universidade da Beira Interior com base quer na Licenciatura em Ciências da Cultura, quer no Mestrado em Estudos de Cultura, um trabalho múltiplo e diversificado, que abrange a reflexão teórica e as preocupações pedagógicas, assim como o intercâmbio de experiências com muitas instituições e personalidades que se dedicam a estas matérias.
Como já se referiu, esta colaboração com os agentes culturais não se esgota nas desejadas cumplicidades regionais, alargando-se a todo o país, bem como ao estrangeiro, seja na sua vertente europeia, seja na brasileira.
Contudo, tal e como neste livro se poderá ver, a região da Beira Interior e o desafio que ela representa, também no âmbito cultural, são algo que assumimos claramente.
O título do presente volume – Cultura(S): Definições, Desafios, Percursos – inspira-se num colóquio que teve lugar na Faculdade de Artes e Letras da Universidade da Beira Interior no dia 12 de outubro de 2017 e que foi mais uma jornada académica promovida pela nossa Licenciatura em Ciências da Cultura e pelo Mestrado em Estudos de Cultura.
10º Aniversário da CJLP – “O Judiciário e a Justiça nos tempos dos Descobrimentos”