É poeta e homem de corpo inteiro. Mas visitei-lhe os olhos. Como quando se entra numa casa enorme, mas nos sentamos a conversar apenas numa das suas divisões. Ernesto Melo e Castro é uma casa enorme da poesia, uma casa aberta, mas não lhe conheço todos os cómodos, pois há muito a percorrer entre o alpendre e o desvão. Fiquei-me por ali, a indagar-lhe os olhos, quando o fui visitar na sua casa em São Paulo[1], onde vive há mais de duas décadas, tão longe da nossa Covilhã, tão perto de tudo o resto, que o mundo é onde estamos. Os olhos vivos com que olhou o a realidade e a descobriu tão diferentes de como todos a víamos. Os olhos envelhecem, não o olhar.
Ernesto Manuel de Melo e Castro é um nome sagrado na poesia visual e experimental, quer em Portugal, quer no Brasil onde já publicou uma série considerável de livros engenhosos, cheios de poemas, de infopoemas, ideogramas, traços e letras selvagens, desordeiras, mas com voz…
Recebeu-me no seu escritório feito de livros, de muitos livros. “Cerca de cinco mil livros. É o meu universo.” A biblioteca de uma vida feita de letras, de leitura, de viagens página a página. “Li o seu romance. Há muito que não lia um romance…” Agradeci. Falámos de escritas, de leituras, e eu pregado nos seus olhos vivos de onde a poesia brotou para serigrafias, com uma presença gráfica, visual, forte. A imaginar que aquelas suas longas barbas seriam uma cascata de letras, uma cachoeira de caracteres tipográficos a contarem as suas memórias.
O corpo está quebradiço pelas maleitas do tempo, 87 anos, tem medo de viajar para Portugal que a viagem é longa. “Da última vez senti-me mal!”. Também não parece muito saudoso de um país que nem sempre o acarinhou. “Recebi das críticas mais insultuosas em Portugal, recebi o esquecimento de alguns colegas que eu tanto estimava, vi aqueles que eu mais estimava, como o António Ramos Rosa, morrer quase no anonimato injusto”, disse um dia, para quem quis ouvir, quando o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, veio a São Paulo e lhe outorgou a Ordem do Infante Dom Henrique.
“Abro a janela, mastigo um pão, marco um ponto, desenho a perna. Faço isso tudo, ando para a frente, fico na mesma…”
– Ernesto Melo e Castro –
Tem um rosto tranquilo, uma figura helénica, aquele carisma que sempre o caracterizou. Mantém aquela cintilação nos olhos que insiste em negar e esconder a fragilidade exterior do corpo. Nesta casa está em paz, forte entre os livros. Deixa-se banhar pela luz natural que vem da janela, e continua a inspirar e expirar poemas. Escreve à mão e vira as folhas ao contrário para ninguém ver. “Não gosta que o leiam”, comenta a Elza, a sua esposa, outra apaixonada das letras, que o complementa na vida, que o ampara com aquela ternura com que se debruça sobre ele. Também lhe brilham os olhos na cumplicidade.
Ernesto Melo e Castro tem uma voz cândida, de palavras amigas quando fala da minha escrita, de palavras entranhadas de lembranças quando fala da Covilhã, dos têxteis, da universidade… e eu, que nunca me encontrei com ele, nesta terra de bons panos que é a nossa, fui apertar-lhe a mão lá no Brasil, porque a admiração não tem fronteiras e nos faz bem sair do caminho, para nos perdermos num abraço… despedimo-nos com um “até à próxima”. Que os seus olhos continuem a brilhar até lá!
Ernesto Melo e Castro nasce na Covilhã, em 1932, no seio da família Campos Melo, uma família de industriais têxteis na cidade da lã e da neve. Haveria de rejeitar um percurso formativo ligado à engenharia, imposto pela família, revelando já aqui uma rebeldia e um carácter plasmado nas acções poéticas da maturidade.
Vai para Inglaterra em 1953 e forma-se em Bradford, em engenharia têxtil, em 1956. De regresso à Covilhã, cidade marcada pelas sequelas da ditadura e pelos grandes senhores industriais, inicia funções técnicas na fábrica da família que logo abandonaria. Dedica-se ao ensino do desenho têxtil e à direcção técnica de empresas através de consultadoria durante quarenta anos.
Paralelamente desenvolve uma intensa actividade criativa e de investigação no campo da poesia concreta brasileira e depois na poesia experimental portuguesa, tornando-se num dos nomes mais focados e importantes destas duas áreas artísticas.
Em 1962 publica Ideogramas, que viria a ser a primeira edição portuguesa enquadrada nos ideários programáticos da poesia concreta brasileira, contudo a obra de Melo e Castro singulariza-se em relação a este movimento do Brasil e encontra um caminho muito particular, no ceio da poesia experimental portuguesa, recorrendo a ligações intertextuais diversas, numa actividade intensa de quarenta anos de divulgação desta actividade no estrangeiro.
A sua obra fica registada nos inúmeros livros de poesia experimental editados, de que se destaca Visão/Vision de 1972 e Visão Visual
de 1994 onde a sua obra é revelada de forma extensiva. Das suas exposições destacam-se os Poemas Cinéticos na galeria 111, em 1965, que constitui uma das primeiras exposições realizadas em Portugal de poesia experimental; depois desta mostra, Melo e Castro realizaria um conjunto alargado e intenso de exposições individuais e colectivas concluindo na retrospectiva do seu trabalho realizada em 2006 no Museu de Serralves, intitulada O Caminho do Leve. No campo dos happenings e performances é de assinalar a sua participação em Concerto de Audição Pictórica, na Galeria Divulgação em 1965, um evento de grande importância no percurso da poesia experimental e que marcaria uma nova atitude social perante a poesia em Portugal…
(…) “Na poesia tipográfica de Melo e Castro a letra é um objecto de desenho, de construção ideográfica, através de linhas de texto legíveis que corroboram o significado do poema. É no campo da notação gráfica que Melo e Castro produz a sua melhor poesia tipográfica ao construir pautas de fisionomias várias, recorrendo a carimbos ou à máquina de escrever, registando o som e a fonética através de estruturas inovadores, colocando o intérprete – o próprio Melo e Castro – perante novos desafios.”
Reis, Jorge dos (2017) “As partituras gráficas e sonoras de Ernesto Melo e Castro: sua construção e performance.” Revista Gama, Estudos Artísticos. ISSN 2182-8539 e-ISSN 2182-8725. 5, (9), janeiro-junho. 139-149.
[1] 3 de setembro de 2019
Artigo OBSERVADOR