O escorbuto na viagem de Vasco da Gama

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Imagem: Panavideo-Producções-(Youtube)

A doença em alto mar…. In: Índias 


“…A cinco de Outubro de 1498, depois de doze dias de escala, fez-se ao mar em direcção à costa dos negros, embora contra a vontade dos pilotos. Estes defendiam que era preciso aguardar mais uns tempos pois eram ainda evidentes os sinais da contramonção. E estes lá tinham as suas razões. É que a desde logo a natureza se mostrou avessa.

Apanharam céus queimados que se abriram em tormentas, seguidas de arreliadoras calmarias que adormeciam os barcos, para logo retomarem os ventos contrários que endemoninhavam as velas. Se na vinda tinha demorado quatro semanas da África às índias, o retorno demorou-lhes três meses, mas foram tais os tormentos, que eram capazes de jurar que tinham sido três séculos. Os problemas foram de tal soma que todas as luas se lhe assomaram negras. Os homens tombavam para o lado cuspindo sangue das gengivas que apodreciam e se desabotoavam em carne viva, como um “ventre aberto”[1].

O cirurgião-barbeiro cortava-lhes com a navalha a carne apodrecida da boca. Os dentes amarelados, deslassados da carne, pendiam-lhes da boca e provocavam dores lacerantes que os levavam a perder o acordo de si. Pelas dores, por não conseguirem trincar e levar qualquer vitualha ao bucho, pelo sangue negro que cuspiam com pedaços de carne solta, entravam em estado de tal fraqueza que se finavam.

Outros tinham as gengivas, os beiços e a língua de tal forma inchados, que já não podiam falar, era preciso abrir-lhes cortes por dentro da boca para sangrarem e abaterem o inchaço que os sufocava – é que alguns nem respirar conseguiam já. Desesperavam. Os companheiros amaravam-nos então com cordas a argolas de ferro dos mastros. Atavam pés e mãos, seguravam-lhes a cabeça à mercê da força de vários homens e deixavam que o barbeiro, de navalha afiada, os sangrasse na boca e lhes cortasse a carne pútrida – guinchavam como porcos, e como porcos borravam-se pernas abaixo. Mal a lâmina estriava as gengivas, estas estouravam esguichando sangue negro por todo o lado, sujando o barbeiro e as barbas daqueles que os agarravam pela cabeça.

O cheiro a carne podre ficava de tal modo intenso e asqueroso que todos tinham de se virar e tapar as ventas. Alguns vomitavam para os lados ou mesmo para cima do desgraçado que estava a tratamento. E ali ficavam os enfermos, endemoninhados, a estrebuchar nas suas próprias fezes e urina, no seu próprio vomitório e sangue. Perdidos em tais dores, alguns eram acometidos de loucura. Ainda que não se saiba o número certo que haja sido, muitos destes homens saltaram borda fora para encontrar no fundo do mar o descarrego eterno das dores.

Também Vasco da Gama se sentia ensandecer. Tinha as mãos e os pés avolumados. Era tal o inchaço não se tinha de pé nem sequer conseguia pegar na bússola.

Desanimava igualmente da boca carcomida que se lhe abria em chaga e cheirava a podridão. Moléstia antiga – já o samorim se queixara do seu hálito quando o recebera. Bebia às escondidas garrafas de aguardente para limpar as ulcerações entre os dentes podres e ensanguentados. Bebia mais do que a conta, às escondidas, sempre às escondidas, para não lhe verem o assomo de lágrimas entre os olhos quando lhe ardia a boca e a bebida lhe queimava como chamas na carne viva.

Lembrava-se então dos fumos de Calecut que lhe desacordavam o corpo e o deixavam aquietar sem dores. Sentia agora falta imensa desses “fumos dormideiros”, que ajudavam a apaziguar as dores e que por certo o ajudariam agora a esquecer o medo, o muito medo que tinha de acabar como numerosos dos seus homens, morrendo aperreados de dor, chorosos como mulheres parideiras, borrando-se pernas abaixo. Todos os dias aventava ao mar homens tomados pela peçonha do demo e, quer de dia, quer de noite, só se escutavam gemidos, como no vale dos leprosos, em que os homens apodreciam em vida.

Chegou-se a noite de fim de ano. Em terras do reino, nos salões do paço – pensava Gama – deveria haver música, abastança de mesa e de mulheres formosas, tão aprazíveis e quentes como os fogos que iluminariam a noite. E sentiu-se profundamente só e abandonado no meio do mar, perdido na sua dor do corpo e da saudade…”

 

IN: ÍNDIAS

João Morgado 

Trilogia dos Navegantes

Clube do Autor, 2016

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[1] Nome pelo qual era conhecido o escorbuto – doença resultante da grave carência de vitamina C na dieta alimentar o que levava a situações de extrema fraqueza, hemorragias e tumefacção purulenta das gengivas, queda gradual dos dentes, inchaço da língua, dores nas articulações, feridas que não cicatrizavam.


 

«Desde o seu primeiro livro que leitores e críticos são unânimes, João Morgado é mestre na arte de recriar ambientes históricos longínquos, diálogos verosímeis, personagens fascinantes, e «Índias» não foge à regra. Partindo dos registos oficiais da época e dos factos históricos comprovados, João Morgado descreve com especial detalhe não apenas como era a vida nas naus e nas caravelas portuguesas como todo o quotidiano lisboeta no alvor do Renascimento. Eis um romance histórico sobre o grande navegador português, Vasco da Gama.»

– Clube do Autor –


 

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