A TROUXA (Conto integral)

1274
(CONTO) __ in: MEIO RICO ___

A Ti’Augusta era mais amiga das águas que das pessoas. Desde pequena que passava os dias junto à ribeira. Primeiro a chapinhar nas águas frias, depois a trabalhar, que a vida era difícil e a infância pequena. Com a avó e com a mãe, aprendera a lavar a roupa dos senhores da cidade, e sem tempo para brincadeiras nem para a escola sequer, crescera por ali, nas margens húmidas da aldeia, entre amieiros, azevinhos e salgueiros, entre as lajes polidas onde se ajoelhava como numa missa, e de bruços sobre as águas, lavava as roupas num ritual de sacrifício.

De Inverno, o frio enxertava-se-lhe de tal forma pelas costas que a deixava derreadas das cruzes, as águas enregelavam-lhe as mãos, chegavam-lhe aos ossos como lâminas, e o sangue gelado doía-lhe por dentro da pele. Mas, dia após dia, ali estava ela de joelhos, rezando a vida às águas, lavando saias, saiotes, blusas, vestidos, camisas, roupas íntimas…

Foto: Angels Vicente

Trazia diariamente a sua trouxa à cabeça – um pano riscado, sempre de cores distintas para diferenciar as clientes, onde albardava o rol de peças que lhe eram confiadas. Tinha a sua laje de sempre, que se moldara já aos seus joelhos, dizia ela. Falava com a água, cantava para ela, e a água respondia no seu arrulhar – foi assim se tornaram amigas.

Ensaboava a roupa com sabão azul, esfregava-a com uns seixos polidos que traziam no avental, sovava-a na laje com pancadas fortes e húmidas, que faziam espirrar a água entranhada, voltava a passar tudo pelas águas correntes. Se seguida retorcia, e punha as pequenas peças num varal improvisado entre as árvores, e o resto a corar ao sol por sobre as pedras, os arbustos, as ervas – tinha o cuidado de borrifar com água límpida as peças brancas para ficarem ainda mais brancas. Mais tarde voltava a lavar tudo e punha a secar, para depois dobrar e voltar a fazer a trouxa com o seu pano de riscado. E lá ia ela a caminho da cidade, para entregar a roupa às freguesas.

Pelo caminho passou um dia o ti’Custódio com a sua carroça, e vendo a pobre da senhora com o seu passo miúdo, costas castigadas pela vida e o carrego à cabeça, logo lhe lançou o grito:

– Ó Ti’ Augusta, suba aqui para a carroça, que lhe dou boleia. Sempre alivia um pouco as pernas…

– Não te incomodes Custódio, já ‘to avezada ao caminho, na´te preocupes!! – respondeu ela sem interromper o passo.

– Deixe-se lá disso, mulher, suba lá… que o macho que carrega um, carrega dois. Vossemecê já calcorreou estes caminhos por muitos anos, agora precisa de poupar as pernas que já não vai para nova…

– Poi’ não Custódio, poi’ não… essa é qu’é a verdade!! – dito isto, lá estendeu o carrego para cima  do banco de madeira e aceitou a mão que a ajudou a erguer-se para a carroça. Mal se acomodou, tratou logo de pegar na trouxa de novo e colocá-la na rodilha que tinha sobre os cabelos brancos.

– Ó mulher d’um raio, então vossemecê, já me vai com isso outra vez na cabeça? Deixa lá isso sossegado ai no banco…

– Ó Custódio… – respondeu ela -, bem bonda o pobre do macho ter de carregar co’mê peso, vou ainda massacrá-lo com o peso da roupa? Deixa ‘tar que eu levo a trouxa à cabeça!! Na’ te preocupes… Sabes, hoje nasceu uma desavença à Lurdes, a filha da Ti’Josefina do forno…

– Uma desavença?

“João Morgado”

– Sim, quando nasce um segundo cachopo, os mê’s avós diziam que nascia uma desavença… já sabiam o que rezava a história entre irmãos, e as guerras acostumadas das partilhas…

E a carroça continuou em direcção à cidade, com as rodas a chiar no empedrado do caminho. A Ti’Augusta, mais amiga da água que dos homens, lá foi tagarelando coisas da aldeia e coisas do mundo, sempre de trouxa à cabeça, preocupada em poupar a mula de tal carrego.

Covilhã, 1988

 

João Morgado

In: Meio-Rico

Contos, Ed. Kreamus

Comprar AQUI »»