“OS SEIOS DE OFÉLIA” (Conto integral)

2018
BOTTICELLI'S-'BIRTH OF VENUS' (Pormenor)
Conto __ (Original) __

Conheço a Ofélia desde que os seus seios eram pequenos.

Aliás, minto… conheço-a ainda do tempo em que não tinha seios. Do tempo em que vinha para a janela brincar com a tigela de loiça e os seus olhos vinham até mim, reflectidos nas imensas bolas de sabão.

Os olhos eram verdes, o sorriso branco como a pele do seu peito nu.

A sua felicidade cabia juntamente com o arco-íris nas bolinhas rutilantes que ela soprava lá do alto. Muitas vezes vinham cair e respingar o peitoril da minha janela, de onde eu a observava escondido. Depois, era capaz de jurar que as bolinhas de sabão lhe entraram dentro da pele e o leque de cores se lhe abriu na carne – foi quando lhe nasceram os seios.

Acreditem em mim, eram as flores mais puras que existiam, flores de carne macia e pele de luar onde despontavam dois carpelos escuros.

Eu – sempre escondido -, ficava maravilhado a vê-la ondear na janela, como as flores quando dançam de mãos dadas com as brisas mais fortes.

Um dia, a mãe agarrou-a por um braço e obrigou-a a vestir uma blusa. Esse foi o último dia em que vi os seios da Ofélia – para mim, as suas flores ficaram escondidas para todo o sempre na estufa opaca das suas roupas.

Pelo que lhes conto, compreenderão, que foi um dos dias mais tristes da minha vida.

Os meus olhos moravam no rés-do-chão e o seu peito no altivo primeiro andar do prédio em frente. A sua janela abria-se quando havia sol de Inverno, mas era na Primavera que Ofélia se ficava por ali a ver o riscar aberto das andorinhas. E cá do fundo – escondido – via maravilhado como ano após ano lhe cresciam os seios.

Recordo-me perfeitamente quando um risco lhe dividiu o peito, e os seios enovelados de mulher ganharam sombreado e se tornaram volumosos como plantas viçosas, com as suas pétalas altivas, que pareciam querer extravasar dos decotes abertos, das roupas justas de adolescente.

Ela regressava a cada manhã para receber o sol nos cabelos claros, com os seus olhos verdes que encantavam e o seu peito arrebatador para quem passava. Era a mais feminina de todas as paisagens que eu podia sonhar, escondido, na sombra da minha janela rasteira.

E via como os rapazes passavam e repassavam debaixo do seu parapeito, como lhe atiravam pedrinhas aos vidros para que viesse enfeitiçá-los com a sua perfeição, como lhe cantavam serenatas desafinadas – digo eu -, mas que tanto pareciam encantá-la!

BOTTICELLI’S-‘BIRTH OF VENUS’ (Pormenor)

E os seus peitos cresciam e cresciam. Demasiado até, disse eu um dia de mim para mim. Estavam luzidios, cheios como a dimensão do meu silêncio; transbordavam em sensualidade como se tivessem pedido emprestado o contorno do mundo.

Uma tarde o pai arrancou-a à força da janela. Ainda deitou a mão à grade da floreira, mas a força bruta do pai acabou por arrastá-la por entre um bofetão e outro. Ouviram-se então gritos e choros e a sombra de braços no ar, no recorte luminoso da janela. Nessa noite não acordaram as estrelas nem se entreabriu o quarto minguante da lua. Foi tempo de um só choro. Um choro que eu não ouvia, mas pressentia para além dos cortinados de renda que resguardavam a intimidade da casa de Ofélia. E sem saber porquê, chorei também. Chorei por saber que ela chorava, e sofri as dores que ela sofria mesmo desconhecendo os seus tormentos. Adivinhei-os mais tarde.

Depois de um longo inverno, regressou com o despontar do tempo quente, a transbordar amor pelo peito, abençoada pelo espírito da criação, com uma criança nos braços.

Fiquei boquiaberto, mas quem era eu para julgá-la…

Linda. Para mim continuava linda e isso bastava. Diria mesmo, que estava mais linda que nunca. Olhava-a com pudor cá do fundo dos meus olhos baixos, e via o seu peito vaidoso de mãe solteira a alimentar de ternura a sua cria. Acho que o arco-íris ainda estavam dentro das suas flores de carne macia e pele de luar, pois o seu bebé crescia cheio cores, de sorrisos brancos, de olhos verdes como os da mãe. Não tinha um traço do pai – digo eu, que nunca o conheci.

Os peitos de Ofélia alimentaram sonhos, desejos, alimentaram uma criança. Depois, como numa vénia respeitosa, descansaram, abateram-se como o restolho depois do temporal, como se as rutilantes bolas de sabão tivessem rebentado dentro dela como outrora rebentavam no meu peitoril. Tornou-se então uma mulher triste e só, a olhar o infinito a partir da sua janela. Sei-o eu que, dia-a-dia, olhava para ela como quem olha uma virgem na sua prece. Só o filho que crescia em seu redor lhe roubava um sorriso de vez enquanto, um sorriso que com o tempo, era cada vez menos rasgado, menos branco.

E um dia, veio o batom para disfarçar o sorriso sem brilho, o blush para disfarçar a falta de cor, e um colar enorme para dar ao peito a altivez que perdera. Já não tinha vaidade dos seios entretanto consumidos pela idade. Estavam secos pela falta de beijos, mortos pela falta de carícias.

Já não é a jovem Ofélia que eu conheci, do tempo em que não tinha seios. Hoje morre de calores mesmo quando não há sol, mesmo quando é o Inverno a soprar-lhe o rosto.

Sente-se afrontada. O seu peito é grande mas amargurado.

Veste de negro por morte da mãe e por morte do pai – aquele que um dia a arrastou consigo por entre uns bofetões de homem envergonhado. Veste de negro porque é a cor que rima com solidão, é a cor da ausência de um filho emigrado lá bem longe, porque para ela tudo é longe e o fim-do-mundo começa no fundo da sua rua. Tem um colar novo sobre o peito e um olhar perdido no infinito, longe, muito longe.

Eu espero que um dia o seu olhar desça ao rés-do-chão rasteiro dos meus olhos, suave como o respirar de quem dorme, e respingue o meu peitoril como as bolas de sabão que me traziam o reflexo dos seus olhos verdes.

Quem sabe então, eu tenha a coragem de lhe mostrar os meus olhos pardos, de lhe mostrar o meu sorriso furtivo, e de lhe gritar cá de baixo que a amo, mesmo que os seus seios tenham caído de tristeza. Mesmo que os seus seios se tenham apagado sem que lhe tenha conhecido o cheiro ou o sabor. Quem sabe então, cá da minha janela do rés-de-chão, eu tenha a coragem de lhe gritar que a amo. Eu, que continuo nos baixios do meu acanhamento, a olhar o castelo altaneiro do seu peito, de coração apaixonado, na prisão da minha cadeira de rodas…

João Morgado

Prémio Literário António Gaspar Serrano 2016
Menção Honrosa do Prémio Literário Alves Redol 2016

 


 

“João Morgado vive por dentro da pele dos personagens. Homens e mulheres. Tem palavras para as emoções e para as coisas mais secretas da vida”

Lilia Tavares, Poetisa Editora da página “Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen”